sábado, junho 05, 2010

O Português

Em Grenoble e em Lyon concluiu-se nos últimos dois dias, um périplo que o embaixador português em França  tem vindo a fazer por todas as Secções Internacionais Portuguesas em liceus franceses, onde se ensina a língua, a cultura, a história e a geografia. Trata-se de núcleos existentes (infelizmente apenas) em algumas instituições de ensino secundário francês, que contam com a colaboração do nosso Instituto Camões e com o empenhamento dos Reitores das respetivas academias.

No diálogo estabelecido com os responsáveis dessas instituições, ficou-me patente a preocupação oficial francesa em garantir um tratamento à diversidade linguística e cultural existente neste país - pelo que, ao lado do português, encontramos o árabe, o espanhol, o italiano, o alemão, etc. Com toda a simpatia que a excelente cultura anglo-saxónica nos deve merecer, creio ser evidente o interesse, comummente partilhado por Portugal e pela França, de apostar no aprofundamento da diversidade linguística à escala europeia e global, de modo a que o inglês se não converta no "template" único, dominante de forma esmagadora na formação das novas gerações.

No simpático acolhimento que um grupo de estudantes fez, em Grenoble, ao embaixador português, teve lugar uma "viagem" pela memória dos descobrimentos, da música e literatura, para além de uma forte atenção às questões ambientais (onde o embaixador português falhou, com garbo, a dois testes a que foi sujeito...). Interessante lição  foi dada pela ligação entre o património das descobertas e o que daí resultou para o mundo, no tocante à medicina, à botânica, às artes e ao olhar moderno sobre si próprio.

Em Lyon, a poesia portuguesa esteve no centro da cuidada apresentação feita pelos alunos, com uma diversidade de escolha muito interessante de poetas. Aproveitei para assinalar que alguns dos autores escolhidos, como Ruy Cinnati e Reinaldo Ferreira, eram, eles próprios tributários de "viagens" de vida que haviam feito, no caso, respetivamente, por Timor e Moçambique. Também assisti - e colaborei brevemente - numa análise ao papel de Portugal no mundo contemporâneo, com os impactos da adesão à União Europeia em debate.

Ao encontrar, em todas as Secções Internacionais Portuguesas que tenho visitado, alunos de origens diversas - da Guiné ao Brasil, de Angola a Cabo Verde - cada vez mais me convenço de que é muito importante começar a trabalhar numa perspetiva lusófona alargada, aliando os autores de língua portuguesa de diversas origens, que reflitam as várias culturas que nela se exprimem. Qualquer "patrioteirismo" a que alguns possam ser tentados, pode ser que sossegue consciências, mas será apenas um mero adiar do futuro - repetindo, em triste registo, aquilo que, no passado, representou a "negação" lusa da realidade colonial. E, neste contexto, goste-se ou não, a utilização de uma matriz de expressão escrita tendencialmente comum - como a que decorre do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa - vai acabar por ser um instrumento indispensável a esta nova forma de olharmos um mundo que nos é comum.

Em tempo: ver aqui e aqui.

sexta-feira, junho 04, 2010

Israel e Portugal (1)

A polémica que envolve Israel, com uma forte reação internacional em face do violento ataque militar contra um grupo de barcos civis que levavam ajuda humanitária destinada aos palestinianos de Gaza, tem tido fortes repercussões em Portugal. O governo português manifestou o seu repúdio pela atitude israelita, embora alguns setores políticos internos tenham contestado a forma como esse protesto se objetivou.

Neste contexto, e porque tal não é muito conhecido e tem contornos curiosos, que ajudam a interpretar a política externa portuguesa desde os anos 50 à atualidade, gostava de deixar, em dois posts, algumas notas breves sobre a questão da relação histórica entre Portugal e Israel, essencialmente baseadas nos dados factuais referidos num artigo da minha colega Manuela Franco, cujo texto completo pode ser lido aqui.

Num segundo post, deixarei também um testemunho pessoal que talvez possa ser interessante para alguns leitores deste blogue.

Israel nasce, como país, em 1948 e, no ano seguinte, ingressa nas Nações Unidas (contrariamente a Portugal que, por veto da URSS, apenas seria admitido na ONU em 1955). Ainda nesse ano, o governo israelita anuncia a Portugal, numa carta do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, o seu ingresso na comunidade internacional, com vista a promover o respetivo reconhecimento por Lisboa. O silêncio português foi a resposta. 

Não resulta muito clara a razão deste posicionamento português, não parecendo decorrer, como alguns aventam, de uma atitude anti-semita do regime salarazista. Muito menos de um seguidismo com a atitude de Madrid. Tudo parece indicar que Portugal temia provocar uma reação de hostilidade por parte dos países árabes, num momento em que a Índia se tornava independente e começavam a aparecer nuvens de preocupação em torno do futuro das possessões portuguesas naquele espaço. Colocar todo o mundo árabe contra si, agravando o isolamento internacional do país, parecia, assim, estar na base da atitude reticente de Lisboa face a Tel-Aviv. O facto de Portugal ter então reforçado a sua presença diplomática em várias capitais árabes parece, em pleno, confirmar esta teoria.

Em 1953, perante uma insistência israelita, o MNE português opta, de novo, por não reconhecer Israel, argumentando que, se o fizesse, estaria a tomar posição num momento de forte tensão israelo-árabe. Num gesto timorato de dimensão limitada, Portugal faz entretanto chegar a Israel, em 1954, a indicação de que veria com bons olhos a abertura de uma representação consular em Lisboa e, embora não encarasse, por ora, o estabelecimento de uma sua representação similiar em Israel, pedia autorização para tal, no futuro. Com esta atitude, Portugal assumia que isso funcionaria como um reconhecimento implícito do Estado judaico. Por isso, a posição portuguesa, transmitida à Embaixada que procederá ao contacto, deixa claro que a autorização da abertura do consulado "far-se-á sem ser precedida ou seguida de qualquer forma de reconhecimento expresso, que nas circunstâncias actuais não seria conveniente". Era o mais longe que Lisboa estava então disposta a ir.

O mundo árabe, entretanto, mostrou evoluir para uma atitude favorável à autodeterminação dos povos coloniais, contrariando as "esperanças" que a ditadura portuguesa nele havia colocado, nomeadamente numa potencial contradição com os novos regimes da "África negra". Em 1959, no quadro de algumas relações económicas entretanto já existentes, Portugal e Israel subscrevem um "acordo comercial e de pagamentos". No ano anterior, havia sido dada, depois de muito tempo de espera, a acreditação para o primeiro cônsul israelita. O despacho justificativo de Salazar é exemplar de realpolitik: "Os países árabes não mudarão de posição quanto a nós seja qual fôr a decisão que tomarmos. Israel votará a favor". As "contas" na batalha das Nações Unidas, com sucessivas condenações de Portugal, estavam a ser, desde 1955, a grande preocupação portuguesa.

Israel tem, entretanto, uma surpreendente evolução de posição face à política colonial portuguesa, menos por um desagrado com as reticências persistentes de Lisboa e, muito mais, determinada por uma tentativa de "cavalgar" politicamente algumas independências africanas, ao que parece num acordo implícito com Washington. Com o início das guerras coloniais nas possessões africanas de Portugal, essa posição vai-se agravando. Em 1967, Lisboa protestou informalmente pela atribuição por Tel-Aviv de bolsas de estudos a líderes independentistas das colónias portuguesas e chamou a atenção para o facto de armas israelitas terem aparecido em posse da Frelimo. Nesse contacto, Portugal invocou mesmo a proteção dada a judeus durante a 2ª guerra mundial, como forma de melhor denunciar a "ingratidão" de Israel. Afinal, as ações de Aristides Sousa Mendes iriam acabar por ter alguma utilidade, para o tardio argumentário salazarista...

Esta atitude negativa de Israel face à política colonial portuguesa enfureceu Lisboa, que passou a abster-se, nas Nações Unidas, na votação de questões israelo-árabes, talvez na ingénua esperança de atenuar a hostilidade deste últimos. Com a utilização da base das Lages, pelos EUA, para abastecimento de Israel, durante a guerra do Yon Kypur, em 1973, Portugal acabou por suscitar a aberta indignação de todo o mundo árabe, que decretou um embargo petrolífero ao nosso país. Atitude, aliás, injusta. Portugal não fez isso para ajudar Israel: fora submetido a um humilhante diktat americano, a que não conseguira furtar-se.

O 25 de Abril chegou, entretanto. Num post futuro falaremos de como as coisas evoluíram a partir de então. 

Aznavour

Há minutos, a jornalista do "Le Progrès", de Lyon, que vinha conversar comigo ao hotel, ao deparar, no "hall", com Charles Aznavour, que saía, fez questão de fotografar os "dois embaixadores em Lyon", como nos disse ir intitular a notícia. É que Aznavour é hoje embaixador da Arménia junto das instituições internacionais em Genebra, como o carro com matrícula diplomática, que ele próprio conduz, não obstante os seus 86 anos, bem atesta.

Aznavour revelou-se uma figura simpática e loquaz. Explicou-me que a primeira vez que usara o seu recente título de embaixador fora numa visita à nossa Embaixada em Bangkok, julgo que há cerca de um ano, por gentileza do meu colega local. Elogiou a Feitoria onde a nossa missão diplomática está instalada na Tailândia e não deixou de acrescentar: "Vocês foram muito longe...". Atravessou-me a tentação de responder: "Mas já voltámos..." 

Jean Moulin

Ontem à tarde, numa conversa em Lyon com o "prefet" da região Rhône-Alpes, Jacques Géraud, falámos de Jean Moulin, o corajoso líder da Resistência francesa à ocupação nazi, durante a 2ª guerra mundial. A propósito da sua clássica fotografia que acima se reproduz, o meu interlocutor revelou-me que o cachecol nela exibido por Moulin se destinava-se a disfarçar a grande cicatriz provocada por uma tentativa de suicídio, evitada pelos alemães durante a sua prisão.

Jean Moulin viria a fugir da prisão para, tempos mais tarde, ser de novo capturado em Lyon, num ato de traição. Violentamente torturado, viria a morrer de maus tratos às mãos de Klaus Barbie , o "carniceiro de Lyon", também responsável por uma imensidão de mortes, quase todas precedidas de extrema violência. No final da guerra, Klaus Barbie foi recrutado pelos serviços secretos americanos, que utilizaram a sua "expertise" anti-comunista, tendo-se posteriormente refugiado na Bolívia. Em 1983, foi extraditado para França, onde foi julgado e ficou preso, em Lyon, até à morte.

Há uns anos, em Londres, um grande empresário português asseverava a pés juntos, num jantar, perante quem quisesse ouvi-lo, que tinha a certeza que Klaus Barbie era o nome de um boneco que acompanhava a Barbie...

quinta-feira, junho 03, 2010

UTAD

No dia 19 deste mês, a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) irá eleger um novo reitor. A respetiva Comissão Eleitoral, a que presido por inerência de idênticas funções no Conselho Geral da universidade, admitiu duas candidaturas - um cidadão português e um cidadão inglês.

A circunstância de estrangeiros concorrerem a lugares de reitor de estabelecimentos de ensino superiores portugueses não é inédita. Julgo, porém, digno de particular registo que as universidades portuguesas comecem a tornar-se apelativas para académicos do exterior. Essa é a melhor prova da sua vocação para a internacionalização e um testemunho indireto do seu crescente prestígio num espaço universitário mais alargado.

A UTAD está hoje inserida num ambiente universitário português altamente competitivo, o que a obriga a fazer uma reflexão estratégica muito profunda, com vista a tentar definir os melhores caminhos para o seu futuro. A circunstância da eleição de um novo reitor ter lugar precisamente neste tempo de grande exigência acaba por constituir uma excelente oportunidade para levar a cabo um debate profundo e alargado que, partindo das propostas de ação dos candidatos a reitor, envolva todos os seus órgãos e academia em geral. Espero que a UTAD acabe por sair reforçada deste interessante período de auto-análise e que o conjunto da comunidade académica em que se insere possa vir a ficar com ideias muito mais claras sobre o que, com realismo mas também com ambição, é possível esperar da sua atividade futura.

Misericórdia de Paris

Confesso que foi para mim uma surpresa, antes de assumir funções como embaixador em França, constatar a existência de uma Santa Casa da Misericórdia em Paris. Não esperava que existisse uma Misericórdia em França, não obstante vir do Brasil, onde existem várias instituições congéneres. Vim a saber que a Misericórdia de Paris existe desde 1994, tendo sido criada sob o impulso do meu colega Tadeu Soares e que desempenha um papel muito meritório no apoio aos setores mais carenciados da nossa comunidade.

Foi à luz da valia desse trabalho já executado que não hesitei em apoiar a Misericórdia de Paris quando, há meses, nos propôs estabelecer uma parceria com a Embaixada. Em decorrência dessa articulação, tive muito prazer em apoiar a sua pretensão, positivamente acolhida, para vir a obter apoios do Estado português no contexto das atividades no Ano Europeu de Combate à Pobreza e Exclusão.

Desde há uns anos que o discurso descritivo que envolve a comunidade portuguesa em França tende a sublinhar os casos de sucesso, em matéria de integração e de percursos profissionais bem conseguidos. É natural que assim aconteça, não apenas porque essa é uma realidade evidente em muitos setores mas igualmente porque é sempre importante darmos exemplos que possam sustentar o otimismo.

Porém, ser positivo não exclui o dever de sermos realistas. E a realidade aponta para a existência de casos individuais de pobreza e de exclusão social, quer em setores mais antigos da nossa comunidade, quer em faixas etárias mais novas, atingidas pelo desemprego e pela precariedade laboral. É verdade que essas pessoas têm ao seu dispor os serviços assistenciais franceses, mas torna-se importante que saibamos ajudá-las a melhorar o acesso às ajudas e a encaminhá-las para as entidades que as possam ajudar, para além de as habilitar a um recurso aos instrumentos de apoio social que o Ministério dos Negócios Estrangeiros português também tem disponíveis.

O que a Misericórdia de Paris agora se propõe fazer é, precisamente, desenvolver um conjunto de tarefas no seio das quais se institua um "observatório" que nos ajude a desenhar um retrato mais claro e dinâmico dessas situações de desregulação individual, em ligação com as estruturas consulares, com a rede associativa portuguesa, com ONG's e outras entidades francesas, privadas ou oficiais, que operam nessa área. 

Na apresentação do projeto da Misericórdia, que teve lugar na Embaixada na passada 2ª feira, na presença de umas largas dezenas de figuras da nossa comunidade, bem como da sociedade civil e de instituições oficiais  francesas, tive oportunidade de assinalar o caráter ambicioso desta iniciativa. Sublinhei igualmente os números impressionantes e crescentes de pessoas que, por toda a Europa, mas também em França e em Portugal, vivem abaixo do limiar de pobreza, o que hoje é agravado pela crise económica que atravessamos, a qual não abre hipóteses de rápida recuperação de tais situações. E chamei a atenção, muito em particular, para o fenómeno, que é cada vez mais evidente, da chegada de novos imigrantes portugueses, fruto das dificuldades laborais no nosso país, o que constitui um facto a que temos obrigação de estar muito atentos, pelos impactos sociais que daí podem resultar.

Espero sinceramente que a Misericórdia de Paris possa, na linha da tradição antiga que consagrou o relevante papel social de instituições congéneres, reforçar cada vez mais as suas tarefas como agente prestigiado da nossa sociedade civil. Ela poderá contar sempre com o estímulo e com o apoio concreto da Embaixada para esse seu benemérito trabalho.  

quarta-feira, junho 02, 2010

Rosa Coutinho (1926-2010)

Há figuras a que a História associa sempre a polémica. O almirante Rosa Coutinho, que agora desapareceu, era uma dessas figuras.

Rosa Coutinho era uma personalidade desconhecida do país quando, na noite de 25 de Abril de 1974, apareceu na televisão como um dos membros da Junta de Salvação Nacional. Recordo-me da curiosidade com que, nessa noite, nos estúdios da RTP, os oficiais milicianos que, como eu, se encontravam atrás das câmaras, olhavam essa figura sorridente, calva e calma, que a Marinha tinha escolhido como um dos seus dois representantes.

Vim a conhecê-lo pessoalmente mais tarde, nos corredores da Junta, onde eu exercia funções de assessor. Era uma pessoa muito cordial e agradável no trato. Com a crise que sobreveio no governo-geral de Angola, logo em Agosto de 1974, Rosa Coutinho seguiu para Luanda, para substituir o general Silvino Silvério Marques. Rapidamente a sua ação passou a ser contestada por setores portugueses locais, que colaram as suas opções de governo à estratégia do MPLA, considerando-o, em muitas dessas denúncias, como uma figura próxima dos comunistas portugueses.

No ano seguinte, em 11 de Março, depois da tentativa de golpe militar de António de Spínola, recordo bem uma cena tensa que se passou no Palácio de Belém, ao princípio da noite, durante a qual Rosa Coutinho apoiou a realização da famosa "assembleia selvagem" do MFA. Na longa madrugada que se seguiria, devo reconhecer que o almirante foi das vozes mais serenas, tendo então adiantado uma explicação para a aventura spinolista, que cito de memória: "Sabíamos que estavam a preparar qualquer coisa, assustaram-se e nós ficámos à espera que saltassem. E eles saltaram". Muito do que foi o 11 de Março pode aqui encontrar uma explicação. Mais tarde, em 25 de Novembro, dizem-me que terá tido um papel apaziguador e atenuador de tensões, se bem que não fizesse segredo do lado para o qual o seu coração pendia.

Desde sempre que a internet e as caixas informáticas de comentários dos jornais estão cheias de comentários insultuosos sobre Rosa Coutinho, talvez a personalidade mais vilipendiada de todas quantos intervieram no processo de descolonização. Com efeito, ele terá sido a principal "bête noire" de quantos sairam de África, num registo de tragédia, durante esse período. Só a História poderá julgar, com serenidade, o papel do almirante Rosa Coutinho em todo o processo do 25 de Abril.

terça-feira, junho 01, 2010

Ferreira Gullar

Cheguei a uma idade em que a ignorância já se pode confessar. Até ir viver para o Brasil, desconhecia por completo a obra de Ferreira Gullar, escritor de cujo nome tinha ouvido vagamente falar, mas de quem não tinha lido uma única linha.

Foi o "londrino" Helder Macedo quem, numa noite de conversa num restaurante do Rio, me chamou a atenção para o autor de um livro com um nome bizarro, "Poema Sujo", considerando-o merecedor do prémio Camões, que nesse dia fora atribuído a um outro escritor de língua portuguesa. Por essa "dica", dias mais tarde fui à procura da sua obra e descobri uma vibrante e interessante escrita.

Para quem quiser conhecer a poesia, recomendo que comece pelos "Poemas Escolhidos". Quem pretenda inteirar-se melhor da personagem, leia o "Rabo de foguete - os anos de exílio", uma memória interessante, escrita na primeira pessoa, dos perseguidos da ditadura brasileira e dos respetivos percursos do exílio. Quem tiver curiosidade de visitar toda a sua obra, tem hoje ao dispor a imensa "Poesia completa, teatro e prosa", da Aguilar.

A Ferreira Gullar foi acaba de ser agora atribuído o prémio Camões. Parabéns pela presciência, Helder!

Outros tempos...

Por gentileza de Fernando Correia de Oliveira

segunda-feira, maio 31, 2010

Cunhal e o Protocolo (2)

A propósito da história aqui contada, há dias, sobre Álvaro Cunhal, uma amiga relatou-me uma cena passada, nos idos de 70, no Palácio da Ajuda, durante um jantar de gala, na receção de um chefe de Estado estrangeiro.

A esposa de um ministro português, senhora pouco dada ao mundo social e de um conservadorismo primário, pediu para falar com alguém responsável pela organização do jantar. A razão era simples: tinha sido colocada ao lado de Álvaro Cunhal e, sem cerimónias, adiantou que não queria comer "com um comunista ao lado" e "logo com esse homem horroroso!".

Foi explicado à senhora que as regras do protocolo eram o que eram, que o "homem horroroso" era o líder de um dos partidos com assento parlamentar e que não era viável fazer mudanças de lugares, porque isso implicaria ter de trocar outras pessoas, o que iria forçosamente gerar algum escândalo. À palavra "escândalo" - que mais tarde viria a atingir o seu marido, mas isso não faz parte desta história... -, a senhora acalmou e lá se acomodou à ideia de ter de comer "com um comunista ao lado".

No final do jantar, a diplomata cruzou-se com a senhora, ainda nos corredores da Ajuda, e inquiriu como tinha corrido o repasto. A senhora estava radiante: "Sabe? O Dr. Cunhal é simpatiquíssimo. Imagine que até conhecia os nomes das heroínas dos romances de Madame Delly!".

Permanecerá para todo o sempre em mistério a razão pela qual o líder comunista havia lido romances típicos da adolescência feminina dos anos 50 e 60. Já agora, convém dizer que a Madame Delly era o pseudónimo de dois escritores franceses.

Coincidências

Dois dias após Israel ter sido admitido como membro da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), depois de uma longa e muito contestada batalha diplomática, no termo da qual foram derrotados quantos consideraram que esse gesto era um "prémio" indevido ao seu contestado comportamento no plano internacional, o governo de Tel-Aviv levou a cabo em águas internacionais, com um elevado saldo de vítimas mortais, um ataque militar a embarcações civis que transportavam ajuda humanitária para o território da Palestina.

domingo, maio 30, 2010

"Há dias assim"

Não ouvi a canção que Portugal levou este ano ao festival da Eurovisão. Mas acho o título deliciosamente português: "Há dias assim". Mais ou menos "assim" são quase sempre os dias das nossas noites na Eurovisão...

Sou de um tempo em que o festival português da canção e, depois, o da Eurovisão, paravam o país, comigo incluído, bem entendido. Lembro-me bem de uma noite de 1967, no Porto, em que só uma réstea de bom-senso me fez optar por ir para o "galinheiro" do Palácio de Cristal, ver um Portugal-Espanha em hóquei, em vez de assistir, na sala de TV do Centro Universitário, à vitoria de "O vento mudou", de Eduardo Nascimento. No ano seguinte, colaborei com o júri que, em Vila Real ("Aqui vão os votos do júri de Vila Real: canção número 1..."), certificou a escolha de "Verão", de Carlos Mendes.  Em 1969, Simone de Oliveira quase que trasladou para a final da Eurovisão, em Madrid, a "alma" do país, com a "Desfolhada". A dimensão popular da sua recepção em Santa Apolónia derrotou a chegada do Porto de Humberto Delgado, em 1958, e estabeleceu uma fasquia a que Mário Soares não conseguiu estar à altura, quando regressou do exílio, em 1974. 

Esse foi também o início do cíclico, angustiado e também muito lusitano tempo das "vitórias morais", da denúncia das sinistras conspirações internacionais contra as nossas inspiradas obras, pela óbvia perfídia dessa Europa a que já havíamos aderido vocalmente "avant la lettre". Tempo que passou a consagrar, com a vitória interna, a saudável presença de José Carlos Ary dos Santos nestas lides musicais. A textos seus se ficaram a dever alguns dos melhores momentos do festival.

A canção vitoriosa em 1974 foi a senha da Revolução de abril, com Paulo de Carvalho a cantar "E depois do adeus". O adeus à ditadura foi, para mim, o início do adeus ao festival. Em 1975, um capitão de Abril (!) representou Portugal na Eurovisão, num escusado pleonasmo político-musical. Seguiram-se dois anos de canções militantes para, finalmente, o nosso país passar a eleger coisas com títulos tão significativos como "Dai-li, dai-li dou", "Sobe, sobe, balão sobe" ou outros com idêntica profundidade. Nuns anos, ainda houve recaídas para o cançonetismo de "mensagem", noutros, há que reconhecer, aconteceram momentos musicais com alguma graça e qualidade. Muito poucos.

A presença da canção portuguesa nos festivais da Eurovisão é, desde o primeiro dia, desde 1964, um dos raros momentos do ano em que a política externa portuguesa é assumida pela generalidade dos cidadãos do nosso país: "vamos a ver se os "nuestros hermanos" votam ou não em nós!"; "ainda estou para saber para que serve a velha Aliança? Os "bifes" deixaram-nos cair"; "espero que os nossos emigrantes ponham a França a nosso favor"; ou "e deixámos nós aqueles tipos entrar para a Europa para agora não nos darem nem um pontinho...". E só registo os comentários publicáveis, claro. João Abel Manta retratou como ninguém, em tempos de ditadura (e, julgo, teve um ridículo processo censório por isso), esse "musicopatriotismo", como a imagem acima atesta.

"Há dias assim..."? Há, são sempre assim os dias "eurovisionários" dos portugueses, os quais, como dizia o Dr. Salazar, que disso manhosamente se aproveitava, "gostam de viver habitualmente".

Douro

O mundo é pequeno: um amigo brasileiro, residente no Sri Lanka, chamou há pouco a minha atenção, aqui em Paris, para um artigo sobre o Douro, hoje publicado no "The New York Times".

É do jornal  que "subtraio" esta fotografia, que acompanha um texto interessante sobre uma das regiões que os portugueses ganhariam em conhecer melhor. As descrições do Porto também valem bem a pena. O articulista coincide comigo no fascínio pela rua das Flores. Quantos visitantes do Porto conhecem a rua das Flores?

Aqui fica o link.

sábado, maio 29, 2010

Dennis Hopper (1936-2010)

A maioria lembra o "Easy Ryder", filme que também dirigiu. Eu recordo, em especial, "O Amigo Americano" e o "Blue Velvet". Mas alguém que, em cerca de 150 filmes, esteve no "Johnny Guitar" (não me recordo de o ter visto por lá, mas as biografias assim o dizem), no "Rebeldes sem causa", no "Gigante" e no "Apocalypse Now" ficará, para sempre, na história do grande cinema.

"Blogueurs"

Foi um exercício curioso, aquele em que ontem participei: um debate na Embaixada com "blogueurs" e "blogueuses" franceses, numa iniciativa do Turismo português.

Durante mais de duas horas, cruzámos-se experiências sobre a formação e progressão dos nossos blogues e discutimos o modo como Portugal e a realidade portuguesa é percebida em França, através do olhar de "bloggers" situados em áreas tão diversas como os assuntos europeus, a literatura, a gastronomia ou os comentários de viagens

A "blogosfera" é, cada vez mais, um espaço paralelo de informação da maior importância, com o qual é vital interagir, porque atinge e mobiliza "opinion makers" em relevantes faixas etárias, profissionais e culturais. 

O nosso país, que em França vive ainda muito ligado a uma imagem caricatural de que apenas nos últimos anos se tem vindo a desprender, só tem vantagem em ver-se abordado e discutido neste diferente mundo comunicacional.

O encontro de ontem foi uma oportunidade para nos ajudar a ver Portugal  através de olhares muito diversos daqueles que fazem parte da nossa rotina tradicional de contactos. Um excelente exercício, em suma.

sexta-feira, maio 28, 2010

28 de Maio

Poucos portugueses reconhecerão a figura representada nesta fotografia. Eu diria mesmo que alguns não farão sequer ideia de quem é, mesmo que se lhes diga que o seu nome é António Maria da Silva.

Porém, neste ano em que se comemora o centenário da implantação da República e nesta data de 28 de Maio, na qual, em 1926, começou um regime ditatorial que só terminaria em 25 de Abril de 1974, importa recordar que esta personalidade era então o primeiro-ministro legítimo de Portugal e cujos poderes foram usurpados pelo golpe militar. 

António Maria da Silva (1872-1950) era engenheiro de profissão, membro do Partido Republicano Português, tendo sido uma figura proeminente da 1ª República portuguesa (1910-1926), período durante o qual exerceu diversos cargos de governo.

quinta-feira, maio 27, 2010

Cunhal e o Protocolo

Álvaro Cunhal (retratado acima pelo genial olhar fotográfico do meu amigo Alfredo Cunha) foi uma das mais controvertidas personalidades da vida contemporânea portuguesa. Secretário-geral do Partido Comunista Português durante várias décadas, projetou uma forte imagem pessoal que quase se confundia com aquela força política. A História do nosso país, no século XX, não se fará sem ele, embora muitos achem que acabará por se fazer contra ele.

A biografia de Álvaro Cunhal é objeto de uma obra, ainda inacabada, de José Pacheco Pereira - ela própria, também, um estudo com contornos polémicos, no qual Cunhal e o seu partido se recusaram a colaborar, sendo embora, na minha opinião, um documento indispensável (ia a escrever "incontornável", mas temi algumas vozes indignadas contra o vocábulo) para se entender a história política portuguesa do século XX.

Acaba agora de ser publicada uma memória sobre Álvaro Cunhal, escrita por Carlos Brito, uma das figuras marcantes do comunismo português, resistente contra a ditadura e, no período democrático, personalidade proeminente que chegou a ser candidato à presidência da República. Trata-se de um trabalho interessante, feito à luz da proximidade do autor com o líder comunista, que nos revela algumas facetas desconhecidas da sua personalidade, embora mantenha muito da tradicional reserva de quem quer, no essencial, permanecer leal àquela área política.

Vários testemunhos comprovaram, ao longo dos anos, que Cunhal, sendo embora uma figura de rutura em muitos domínios da vida política, era muito cuidadoso com as facetas exteriores da imagem do Estado, que respeitava com grande escrúpulo. Daí que as simples questões protocolares, porque as entendia com um simbolismo significativo, o preocupassem sempre.

Carlos Brito, a certo passo do seu livro, revela que, um dia, um deputado comunista, indicado para acompanhar uma visita oficial ao estrangeiro, anunciou que não ia utilizar gravata, não obstante as regras protocolares recomendarem um traje formal em certas ocasiões da deslocação. A persistente resistência do deputado fez subir o assunto a níveis mais elevados de decisão.

O deputado foi, assim, chamado a uma conversa na sede do partido. A certo passo da reunião, Cunhal entrou inopinadamente na sala e, como forma de reforçar os argumentos de quantos pretendiam demover o deputado da sua irreverente teimosia, foi pedida a opinião do secretário-geral sobre o assunto.

Depois de ouvir as "partes" e refletir sobre as regras que eram exigidas, Álvaro Cunhal fez notar que, tratando-se de um país africano, era comum, como alternativa às roupas protocolares europeias, o uso de trajes tradicionais em cerimónia oficiais. E acrescentou: "Ora nós temos trajes tradicionais muito bonitos, por exemplo, os minhotos". E logo adiantou: "O nosso camarada podia ir vestido de minhoto e evitava-se a gravata. Até podemos telefonar já aos camaradas de Viana a encomendar um fato".

O pânico terá irrompido na cara do relutante deputado, que concedeu de imediato: "Não é preciso, não é preciso, eu vou comprar a gravata".

Debate transatlântico

Voltei hoje a Nanterre, a universidade mítica do Maio 68, para inaugurar um interessante colóquio sobre os olhares cruzados da intelectualidade portuguesa e brasileira, durante o último e republicano século comum. Tive o prazer de constatar, nesta organização que muito deve ao entusiasmo do professor José Manuel Esteves, os frutos da ligação da universidade francesa à UTAD - a universidade portuguesa a cujo Conselho Geral presido.

A palestra que apresentei assentou na análise das perceções mútuas entre Portugal e o Brasil, na sua complexidade e ambiguidade, para além da almofada ritual da retórica, um bosquejo histórico  e cultural que procurei conduzir desde o final do século XVIII até aos tempos da CPLP. Com alguns exemplos, defendi a tese, que há muito alimento, de que é a África - e a relação diferente de Portugal e do Brasil com a África - uma importante chave para entender muito do que tem sido o curso das relações políticas bilaterais ao longo dos últimos dois séculos.

Saiba mais sobre este interessante colóquio aqui.

quarta-feira, maio 26, 2010

Coreias

A comunidade internacional habituou-se, de há muito, à permanência da tensão entre as duas Coreias. O profundo trauma da guerra e a ideia de que prevalece um laço afetivo indelével entre ambos os países criaram, entretanto, a perceção de que, não sendo impossível, o conflito se torna improvável. As notícias dos últimos dias não são, contudo, muito animadoras.

O mundo também se acostumou a olhar, com curiosidade, para o registo ciclotímico das reações de Pyongyang, quer em relação aos seus vizinhos do sul, quer, principalmente, face aos Estados Unidos, país com o qual, formalmente, o regime do norte teima em considerar-se em guerra.

Para alguns observadores, a chave para a atenuação das posições da Coreia do Norte reside em Moscovo ou em Pequim. Há alguns anos, dois dias de debate intenso em Seul, a convite da autoridades da Coreia do Sul, num seminário sobre "confidence and security building measures", que envolvia russos e chineses, ao tempo em que os "six parties talks" prometiam resultados, deixaram-me algumas dúvidas sobre se algum desses grandes vizinhos da Coreia do Norte tinha um "leverage" suficiente para contrariar certas da suas derivas potenciais. Há que convir, no entanto, que são os únicos que mantêm um canal de comunicação permanentemente aberto com o regime norte-coreano, descontando, por óbvias razões, alguns outros atores caricaturais da cena internacional.

De modo homólogo, não deixa de ser interessante notar que o conselheiro diplomático do então presidente da Coreia do Sul, um amigo que conhecia de Nova Iorque e que teve então a gentileza de me convidar para um almoço a dois, deixou-me evidente que havia um mundo de ambiguidades e de importantes diferenças entre as percepções de Washington e de Seul, quanto à relação desejável com a Coreia do Norte. Por curiosidade, esse amigo chama-se Ban Ki-moon e é hoje secretário-geral da ONU.

É neste quadro de influências limitadas, que não mudou muito desde então, que a tensão voltou a subir entre os dois lados do paralelo 38. Neste cenário, projetam-se agora o que parece serem novos problemas internos na liderança em Pyongyang e, naturalmente, também novas e preocupantes dimensões militares, agora já com facetas nucleares.

O prosseguimento de uma situação de "acossamento" como o que a Coreia do Norte atualmente vive, se bem que autoprovocada e inevitável pelas regras do Direito Internacional, não deixa, contudo, de constituir um enorme risco para a estabilidade e para a paz internacionais. É das regras da política que, muitas vezes, algumas aventuras externas são a forma de procurar "dar a volta" a crises internas. E, neste caso, o mundo está a lidar com um regime em que o processo decisório passa por caminhos insondáveis.

Por essa razão, porque o que está em causa na região é muito sério, tudo deve ser tentado para baixar o nível de tensão existente, quanto mais não seja para se ganhar algum tempo. Assim, qualquer que seja a sua real capacidade de influência, compete em especial à Rússia e à China esgotarem todas as cartas de que possam dispor. Porquê? Porque têm responsabilidades particulares à escala global, porque são vizinhos e porque a nenhum deles seria conveniente o desencadear de um conflito em grande escala numa área estratégica próxima, o qual se se sabe como pode começar, mas não se tem ideia de como poderá acabar.

Livros

Associo-me com gosto a esta iniciativa e volto a recordar isto.

Os EUA, a ONU e Gaza

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