quarta-feira, julho 05, 2017

Pontualidade


Faltavam 45 minutos para o meu compromisso em Campolide. Em regra, demoraria 15 minutos a lá chegar. Fui com tempo. "Esperto", ao ver a intensidade do trânsito na rua da Lapa, que indiciava já um "rush" sobre o Rato, "escapei" por Campo de Ourique. Mas nem uma agulha bulia, logo no meio da Sampaio Bruno. "Connaisseur" como sou, tentei ir dar aos Terramotos por uma via interna que eu cá sei. Qual quê! Nada, ninguém se mexia, pelos vários cruzamentos do bairro. Ao fundo de cada rua, viam-se filas perpendiculares de carros, sempre parados. Bom, para grandes males, grandes remédios: talvez por Alcântara e, depois, "fintar" os engarrafamentos pela Avenida de Ceuta. Ia já pela Maria Pia quando percebi que, por ali, também estava "perdido". Rumei de volta aos Prazeres e, claro, regressei a casa. Pontualmente. Cheguei precisamente à hora a que deveria arribar ao meu compromisso. Achei que, para comemorar, merecia um gin tónico, no jardim. E cá estou. A horas, claro.

Elogio das manhãs cinzentas




O dia acabou por se "ajeitar", como se diz na minha terra. Mas, ontem, ao sair de casa, de manhã, pairava sobre Lisboa um céu de cinza, um leve vento fresco, mesmo alguma humidade.

A nossa memória guarda coisas longínquas e, nesse instante, o que é que me veio à cabeça? Imaginem lá! Algumas "belas" manhãs de agosto, em Viana do Castelo, na minha infância.

O meu pai, nos verões, zarpava com a minha mãe e comigo, por umas três semanas, para Viana. Desde o dia imediato à nossa chegada até à véspera do regresso a Vila Real, as manhãs na praia do Cabedelo eram "sagradas".

Para mim, aquilo era um excesso de praia, atividade que, se matutina, nunca me entusiasmou por aí além. Era preciso levantar bem cedo, caminhar até à avenida, toalha sob o braço a embrulhar o calção de banho, embarcar numas camionetes a cair de velhas, vermelhas, da Auto-Viação do Minho, partir para a praia através da ponte e do Cais Novo. O cheiro "mecânico" daquelas viaturas está-me ainda no olfato, o arrascanhar do "meter da segunda", a meio da curva de 180° de entrada para a ponte, é um ruído que também me ficou.

Chegados ao Cabedelo, lá para as nove e meia, era habitual começar-se o dia de vilegiatura com um vento desagradável, arenoso. Eu procurava o refúgio da barraca, o meu pai forçava um passeio e, no seu termo, havia sempre um sinistro banho! A água, por ali, sempre foi frigidérrima, detestável, mas o meu pai obrigava-me a mergulhar, pelo menos uma vez. À medida que fui tendo direito a opinião, argumentava já com as constipações que aquilo podia criar (tentando por aí a cumplicidade da minha mãe), mas o meu pai contrariava-me com os efeitos salutares dos "pirolitos" de água salgada. Era uma guerra perdida, da qual só consegui "desertar" já na adolescência. Com sorte, havia pelo meio uma escapela ao "Raio Verde", para um Rajá, uma Invicta Cola ou um Ginger Ale (em Vila Real, sei lá porquê!, ainda não havia Ginger Ale). Aproximada a hora de almoço, lá vínhamos nós no percurso inverso, com banho a correr, porque a minha avó exigia tudo sentado, impreterivelmente, à mesa, à uma hora. Se bem me lembro, era uma canseira!

Porque é que a manhã de ontem me trouxe, então, uma memória positiva? Porque me recordou alguns dias em que, bem cedo, ao abrir-se a janela que dava para Santa Luzia, o meu pai constatava que estava tudo enevoado - e, em alguns dias (gloriosos!), até chovia!

O meu contentamento íntimo era então inversamente proporcional à irritação do meu pai, para quem a perda de um dia de praia era algo de terrível. Eu olhava-o, ansioso, da cama, temendo apenas ouvir o "isto ainda pode abrir...", que às vezes o levava a arriscar cruzar a neblina, connosco atrás.

Para mim, os dias ideais eram, então, aqueles em que ele concluia que "isto hoje já não se compõe!". Ouvir isso era uma benção: dava-me mais uma hora ou duas de cama e era a garantia de um dia de brincadeira lá por casa, com os meus primos, da "torre" (as águas furtadas) à "loja" (uma cave que conserva o cheiro a humidade desses tempos).

A imensa casa da minha avó é agora uma escola de música. Consegui, há tempos, visitá-la. E lá fui encontrar, na "loja", o cheiro, bem como a janela sobre Santa Luzia, que me deu tão deliciosos dias de névoa e preguiça.

terça-feira, julho 04, 2017

A Papuda

- ... e agora, se quiser, posso ir informá-lo à Papuda.

Aquele responsável político português, cujo nome me escapou para sempre, deve ter ficado espantado, do outro lado da linha, quando ouviu este meu final de frase.

- À Papuda? O que é a Papuda?, perguntou-me o homem, a alguns milhares de quilómetros de distância.

Eu estava, devo confessar, cheio de gozo. Embaixador no Brasil, desde há alguns meses que havia recebido instruções para praticar uma determinada "diligência", que envolvia um cidadão português. E, durante esse longo tempo, deliberadamente, não cumpri tais instruções. Fiz o chamado "veto de bolso". De Lisboa, as pressões começaram a chover, por várias vias, algumas das quais seguramente mobilizadas pelo homem, cujos telefonemas eu cuidava em não atender. E mantinha, sobre o assunto, um total silêncio. Estava, a bem dizer, no limiar da prática de uma infração disciplinar, ao não dar sequência ao que me tinha sido oficialmente solicitado. 

Mas eu sabia bem o que estava a fazer. A figura em causa estava sob forte suspeita de ter cometido um grave crime, por parte das autoridades policiais brasileiras. Isso mesmo me fora dito, "a título pessoal", com pedido de total confidência ("mesmo perante as suas autoridades"), por parte de uma figura cimeira do aparelho judicial brasileiro.

Ninguém, em Portugal, tinha a menor ideia de que essa pessoa era um potencial criminoso e, por essa razão, persistia-se na insistência de que eu tomasse uma iniciativa que a iria favorecer. Ora eu tinha dado a minha palavra de que não revelaria a ninguém, nem mesmo às minhas autoridades, as graves suspeitas que impendiam sobre essa pessoa, enquanto durasse o processo de investigação. Temia que, caso eu "abrisse o jogo" e revelasse a "Lisboa" as suspeitas existentes, algo pudesse chegar ao conhecimento do homem, que assim poderia precaver-se e frustrar a ação da justiça brasileira.A minha posição não era, assim, nada fácil. 

Numa manhã, porém, ao abrir o jornal, deparei com uma notícia: o tal cidadão português, com um conjunto de outras pessoas, fora detido sob acusação de crimes graves (tão graves que viriam, meses mais tarde, a levar à sua condenação a um cúmulo jurídico de dezenas de anos de cadeia). 

Foi então que liguei, "vingado", ao tal responsável político português. Seguramente com alguma ironia na voz, sintetizei o assunto e disse a frase com que abro este texto. Do outro lado da linha, a pessoa percebeu, finalmente, as (escondidas) razões da minha "indisciplina". Às vezes, não é fácil ser-se embaixador, podem crer.

Mas, finalmente, o que é a Papuda? É uma prisão de alta segurança, em Brasília. Lembrei-me da história ao ler, há pouco, que uma importante figura política brasileira - das várias com quem tenho fotografias sociais, neste caso ao tempo em que a pessoa em causa era ministro... - acaba de ingressar na Papuda.

É a vida!

O discurso

O discurso político é parte da ação política. Não a substitui, mas complementa-a, explicando-a e procurando torná-la percetível e aceite aos olhos dos cidadãos. 

Quando se exerce funções políticas, a regra (não escrita) é assumir um discurso afirmativo, com escassas dúvidas, transmitindo confiança às pessoas. Parte-se do princípio de que, perante a insegurança e as dúvidas naturais das pessoas, em face de situações que abalem o seu quotidiano, cabe aos dirigentes políticos oferecer uma direção, dar a ideia de que as coisas estão "em boas mãos". Se o cidadão delegou em alguém o exercício da autoridade e da gestão do Estado, é importante que esse mesmo cidadão, ao olhar para quem titula o Estado, encontre razões para atenuar por as suas eventuais inseguranças, ao ver que a governação aponta um caminho em que ele acredita.

Em tese, as coisas são assim. Mas a eficácia do discurso, junto de quem o ouve, nem sempre é garantida. Desde logo, isso acontece se alguns dos titulares políticos, na perceção própria de cada cidadão ou que nele foi induzida por setores críticos, perderam entretanto a imagem de um portador da confiança. Por maior simpatia que Constança Urbano de Sousa me mereça - e merece-me muita - tenho a sensação de que, perante a opinião pública portuguesa, hoje acontece isso com ela.

A segunda marca de um discurso ineficaz é a que é dada por uma afirmação de segurança que a realidade não acompanha. Azeredo Lopes foi, para mim, uma surpresa bastante positiva à frente da pasta da Defesa. Porém, o modo como tem reagido ao escandaloso roubo de armamento em Tancos é, a meu ver, menos adequado. Perante um país mergulhado em fortes dúvidas sobre a capacidade das Forças Armadas em guardarem as suas instalações, entendo que o ministro não deve e não pode assumir um tom "neutro", cheio de rigor "técnico", um fácies impassível. 

O ministro deveria ter acompanhado o sentimento coletivo, deveria ter-se indignado. A emoção faz parte da política: o cidadão que (como eu) se sente encandalizado perante a bandalheira a que (pelos vistos!) chegou a segurança dos paióis militares, quer ter um ministro a partilhar a sua indignação, solidário com o seu espanto, em sintonia com a sua exigência de responsabilidades, perante uma omissão que tem graves efeitos reputacionais na imagem do país.

O discurso, para ser eficaz, tem de ser credível. Às vezes, isso é injusto para a qualidade objetiva dos agentes políticos - como me parece, aliás, ser o caso -, mas é a vida!

segunda-feira, julho 03, 2017

Transições energéticas


Uma conferência imperdível, amanhã, terça-feira, dia 4 de julho, às 10 horas, na Câmara Municipal de Lisboa, com dois convidados "de luxo", sobre um tema da maior importância.
Mais uma organização do Clube de Lisboa.

Eu, a Leste

Na minha rua, há uma loja de produtos do Leste europeu. Hoje, passando pela porta, deu-me para entrar. Alguns pares de olhos com aquele tom de quem teve uma insónia leve, caras para mim algo inexpressivas, de sorrisos escassos, em cabeças loiras, olharam placidamente o "alien". 

Tenho um imenso respeito por quem veio, do outro lado da Europa, tentar a sorte da vida por aqui. Sou, de há muito, um assumido fã dessa imigração. (Sei que é "politicamente incorreto" escolher entre os imigrantes, mas eu assumo a discriminação). Tirando as máfias e os ricos abrutalhados, há uma imensidão de gente de bem oriunda dos países da antiga União Soviética que por aí vive, trabalhando no duro, com filhos nas escolas, muitas vezes falando português quase melhor do que nós (as sonoridades eslavas facilitam isso). Frequentemente - e volto ao simplismo impressionista e à sociologia de pacotilha que aduba as redes sociais -, alguma rigidez e imobilidade naqueles rostos pode causar-nos estranheza, chegando a induzir desconfiança em algumas pessoas. Quem trabalha no dia a dia com imigrantes do Leste diz-me que, passando essa barreira idiossincrática, que pode resultar nalguma dureza fruto das dificuldades da vida, estamos, em geral, perante gente determinada, trabalhadora, fiel aos seus compromissos. Há exceções? Há, como há, e muito, entre os portugueses.

Regresso à loja. Olhei as prateleiras com alguns produtos designados em cirílico e lembrei-me da graça que achava, aqui há uns anos, em fins de semana a errar por Paris, ao encontrar uma mercearia de produtos portugueses, coisas que por cá nunca me passaria pela cabeça trazer para casa.

(Um dia, numa loja perto da Porte d'Italie, a minha mulher surpreendeu-se ao ver-me apresentar, na caixa, uma garrafa de brandy Macieira 5 estrelas: "Para que é que compras isso? Não te estou a ver a beber brandy..." Comprei, claro. Nunca abri a garrafa, mas sabe-se lá se um dia me dá uma de saudade e bebo um cálice (ainda guardo alguns com aquela risca encarnada). Saudade de quê? De mim, nessa idade em que bebia brandy e não me fazia mal. É que, desses tempos de total impunidade hepático-digestiva, confesso, tenho insuperáveis saudades.)

Saí da loja de Leste sem comprar nada. Mas ainda olhei, concupiscente, para um vodka. Mas lembrei-me de que tenho por casa algumas garrafas intocadas desse líquido dos deuses e que seria um excesso somar-lhe, sem o menor objetivo, uma outra. Mas fiquei a imaginar que o vodka seja, para os imigrantes de Leste, o que o Macieira 5 estrelas é para muitos portugueses que lutam pela vida no mundo, fora da terra de que tanto gostam - e que, infelizmente, lhes não deu condições para aí se realizarem. A emigração é a grande fábrica de saudades.  

domingo, julho 02, 2017

Inspiração

"E não lhe acontece não ter rigorosamente nada para escrever no blogue?" A pergunta foi-me feita num jantar, no sábado, por alguém, surpreendido com o facto de eu lhe ter dito que, em mais de oito anos e meio, não ter deixado de colocar por aqui, pelo menos, um post por dia. A minha resposta foi confiante: "Aparece sempre qualquer coisa..." 

É verdade: hoje foi isto. Boa noite! 

sábado, julho 01, 2017

... de autor


Eu tinha-o conhecido há muitos anos, algures no mundo. Sabia, desde então, que nunca fora nem iria ser um diplomata excecional. Fazia apenas o essencial, cumpria os mínimos, dava ares de tentar aproveitar os postos o melhor que podia. Em consequência desta postura pouco ambiciosa e empenhada, a sua carreira foi o que foi: mediana. Como tinha uma vasta rede de amigos, cultivava-os nas suas colocações no estrangeiro, acolhia-os por ali, organizava festas, tinha fama de divertido e espirituoso. De certa maneira, eram esses conhecimentos que acabavam por protegê-lo na sua capital.

Todos os seus colegas ficaram curiosos quando, um dia, ele foi nomeado embaixador. Como iria chefiar um posto? Não desiludiu. Tornou a embaixada que passou a dirigir, localizada numa capital pouco relevante, num local movimentado, sem que daí, porém, resultassem resultados significativos para os interesses do país que representava - um Estado com alguma importância, que dele exigia algo mais. 

Mas o seu consabido estilo sobrepunha-se a tudo. A residência da embaixada fora por si decorada de uma forma tida como bizarra, típica da sua personalidade, bem distante daquilo que era a matriz normal, discreta e funcional, habitual nos postos diplomáticos daquele país. Também a chancelaria acabou por ter um ambiente pouco comum, quase "caseiro", cheia da notas pessoais, sem a "neutralidade" típica desses locais. Para cúmulo, o secretário de embaixada que lhe coube em rifa era também um "cromo" pouco conforme com os padrões da diplomacia do país. Dizia-se que ver o embaixador e o secretário chegarem a uma receção, vestidos ambos de um modo pouco vulgar, era um verdadeiro espetáculo. Com todos os relatos recebidos, a diplomacia desse país começou a cansar-se dele, correndo as versões mais fantasistas sobre o dia-a-dia aquela embaixada.

Um dia, num jantar, encontrei um diplomata "chevronné", colega de carreira do nosso homem, que por acaso o visitara recentemente no país onde este estava colocado. Estava curioso em conhecer o resultado da sua observação "in loco", pelo que logo inquiri sobre quais tinham sido as suas impressões. O velho diplomata, que já tinha visto muito e de tudo, sorriu e, numa expressão curta, em que tudo disse, descreveu-me o posto diplomático: "Sabe, aquilo é uma espécie de 'embaixada de autor' ". Percebi. 

sexta-feira, junho 30, 2017

Para memória futura

Hoje, 30 de junho.

O dilema do eucalipto

Passos Coelho sobre o eucalipto: "Até eu que não sou particularmente defensor do eucalipto acho que não faz sentido estar a demonizar o eucalipto, porque nós sabemos que uma grande parte do território não tem eucalipto e que o eucalipto é o que menos arde."
Depois de ler isto, nesta peculiar forma que me lembra um clássico qualquer que me está a escapar, dei comigo a pensar que, fosse eu eucalipto, não gostaria muito deste elogio.

Desculpem lá!

Num tempo em que os atos terroristas já se praticam de faca e de camião, este roubo de material militar parece-me um acontecimento da maior gravidade, que afeta a imagem do país junto dos seus parceiros e aliados. Com todas as letras, isto é um verdadeiro escândalo!

Seria uma patetice, demagógica e sem sentido, pedir a demissão do ministro (só faltava que ele fosse responsável pela guarda de um paiol!), mas é urgentíssimo saber quem permitiu que as coisas chegassem a este estado de bandalheira, porque as consequências potenciais podem ser imensas. E responsabilizar essa ou essas pessoas, pondo-as "com dono", de "armas & bagagens".

Hipóteses de Europa


Não há ainda certezas sobre o rumo futuro da Europa. Mas há alguns sinais e valerá a pena refletir sobre eles.

Em perspetiva, pode hoje dizer-se que a Europa sobreviveu razoavelmente à crise financeira, embora não tenha conseguido estruturar soluções estáveis para os efeitos assimétricos que ela desencadeou no seio dos países do euro. As lideranças europeias não consensualizaram, no terreno político, uma resposta coletiva de matriz solidária, em face de problemas dos parceiros com inultrapassáveis défices estruturais de competitividade. Perante a crise, as opiniões públicas recolheram-se num tropismo egoísta, entrincheiradas com naturalidade nos seus interesses nacionais, com a ausência de uma pedagogia política sobre o interesse comum europeu a ajudar. 

O compromisso possível, para evitar o risco reputacional que a implosão parcial do euro inevitavelmente provocaria, acabou por ser o financiamento (aliás lucrativo) de programas de resgate, debaixo de uma ideologia punitiva de “culpabilidade”, baseada em modelos clássicos de ajustamento. Nesse contexto, o BCE revelou ser capaz (através do “whatever it takes” de Draghi) de sustentar um ambiente antideflacionista, com baixas taxas de juro, que se sabe ter, contudo, algo de artificial e de inevitavelmente conjuntural. No cenário de fundo, as “bombas-relógio” da imensidão das dívidas continuam por desarmar e nada indica, antes pelo contrário, que se tenham alterado os pressupostos que impedem a respetiva mutualização, bem como o completamento da União Bancária, que contribuiria para um maior sossego dos mercados. As posições, neste domínio, continuam muito fechadas.

O ambiente de “bem estar” que atualmente se vive será mesmo, segundo alguns, uma perigosa ilusão. Um abalo financeiro similar ao de 2007, ou mesmo ligeiramente inferior, depararia ainda hoje com uma Europa claramente não equipada com instrumentos suficientes para lhe fazer face, de forma minimamente eficaz. Muito se avançou, a reboque das provações anteriores, mas o aparelho institucional para a promoção de políticas de resposta europeia sofre ainda de fortes limitações.

O salto institucional centralista de que agora muito se fala, com a criação de um “Ministro das Finanças” europeu, necessitaria, para ser exequível, de mais transferências de soberania (em grande parte simbólicas), que será difícil obter de algumas ordens nacionais, que continuam a jogar com as margens de flexibilidade orçamental como uma das derradeiras escapatórias (com a política fiscal) ao “colete de forças” que o modelo europeu hoje já lhes impõe. À racionalidade da eficácia opõe-se assim a aceitabilidade democrática, ou mesmo a simples legitimidade de algumas destas medidas. E se isto é válido para os governos também o é para os parlamentos, cuja intervenção decisória deixaria de se fazer nos moldes atuais, no caso de se caminhar para a institucionalização de um “fundo monetário europeu”, por transformação  do MEE. 

Aqui chegados, é naturalmente no plano dos compromissos políticos que tudo se joga. A chave, não haja ilusões, está no entendimento possível entre Berlim e Paris. Com a balança interna pós-eleitoral a pender cada vez menos para o modelo da atual “grande coligação” com o SPD, optando a CDU por parceiros mais exigentes, a futura margem de flexibilidade alemã vai depender, quase em exclusivo, daquilo que a França de Macron dela conseguir extrair. Para ter alguma margem negocial, a França precisa de ser “levada a sério” na sua disposição para fortes reformas, cuja aprovação parlamentar parece assegurada, mas cujos impactos “de rua” estão por medir. Acresce que Macron ainda não revelou a sua eventual abertura para que Paris continue a alimentar a “frente sulista”, a que Hollande dera algum “vento”, e que agora conta com uma Itália fragilizada por uma intervenção bancária de dimensões imprevistas. As coincidências entre os dois discursos não são muito evidentes, e isso, no que nos toca, pode não ser uma boa notícia para a estratégia de António Costa.

À mesa na terra do Eça


Hoje, na revista "Evasões", distribuída gratuitamente com o "Diário de Notícias" e o "Jornal de Notícias", escrevo uma crónica "gastrófila" sobre o restaurante Bodegão, da Póvoa de Varzim.

Quem quiser ler o texto (a "Evasões" traz muito mais coisas interessantes, pelo que recomendo vivamente a consulta da revista), pode fazê-lo aqui.

Simone Veil


Morreu uma mulher que, há 43 anos, como membro de um governo de direita, deu a cara pelo direito ao aborto, no seio da conservadora sociedade francesa.
Simone Veil era uma referência em França, uma grande figura moral, muito respeitada. Na infância, sofreu Auschwitz. Seria a primeira mulher a presidir ao Parlamento Europeu.
Tive o privilégio de a conhecer pessoalmente, de escutar a sua sabedoria e de apreciar o seu equilíbrio. A Fundação Champalimaud perde uma conselheira de mérito.

Do senso comum ao inimigo imaginário



Começo por um “disclaimer”: não percebo rigorosamente nada de prevenção florestal, nem de combate a incêndios, não sei se se deve favorecer ou rejeitar o eucalipto, não tenho a menor ideia sobre o que será mais correto fazer para o futuro – salvo o óbvio, que é achar que há interesse em encontrar uma maneira de ter as matas mais limpas e organizadas (mas também não sei como e por que meios), haja em vista os Verões cada vez mais quentes que aí virão. Neste tipo de questões, entrego-me confiadamente nas mãos de quem sabe, de quem estuda estes temas, de quem trabalha no terreno, de quem gere o país. E, perante os factos ocorridos, aguardo serenamente as conclusões que deles devem ser extraídas.

Não posso, assim, deixar de ficar espantado por ver surgir, em especial na nossa classe jornalística, imensos e inusitados “especialistas” no tema, rapaziada que escreve em tom grave, imagino que com o mesmo saber com que se pronunciará sobre a cultura de caracóis na ilha do Corvo. E então nas redes sociais - que estão para os opinadores de hoje como os “cafés centrais” estavam para as tertúlias do antanho - é um fartar de indignados “tudólogos”. Feliz país que tais e tão sapientes filhos tem!

Responder-me-ão: mas um cidadão, a começar pela comunicação social, não tem o direito de se interrogar sobre a razão de dezenas de mortes, sobre o que seguramente falhou, sobre o que de tão incontrolável possa ter ocorrido? Claro que sim! Deve perguntar, tentar perceber, obrigar à responsabilização de quem gere a coisa pública. Mas também deve fazê-lo sem partir do princípio de que o senso comum lhe dá alguma particular autoridade, sem presumir respostas que ainda ninguém tem e que apenas resultarão dos inquéritos, que infelizmente demorarão tempo. Deve agir com serenidade e seriedade, não deixando a impressão de que os poderes públicos são afinal o “adversário”, o “inimigo” que está ali para esconder coisas inconfessáveis, para proteger interesses suspeitos, enfim, para nos enganar a todos. 

Esta visão da democracia como um palco onde só há incompetentes, corruptos e mentirosos é uma perspetiva doentia da política, uma pandemia cívico-mediática que dá pasto às mais alucinadas teorias conspirativas. E quem, no seio da classe política, cavalgar oportunisticamente estas ondas (hoje fá-lo alguma direita, como no passado o fez alguma esquerda, porque aqui não há inocentes), não está a perceber que, face aos seus ganhos imediatos, há um preço político muito maior que irá pagar – que é a descredibilização geral da máquina pública, que só vai aproveitar aos demagogos.

quinta-feira, junho 29, 2017

O amuleto

(O "Delito de Opinião" é um dos mais populares blogues portugueses. Pedro Correia, coordenador daquele blogue, fez-me um amável convite para nele colaborar com um texto, o que fiz com grande gosto. Visitem o excelente "Delito" - como é conhecido no mundo da blogosfera - e, até lá, leiam, também aqui, o meu texto)

Os fins de tarde, naquele bar, são por regra uma hora bem sossegada. Tirando encontros furtivos de casais episódicos ou alguma conversa de negócios ou da política, só alguns espontâneos em busca de uma última bebida, antes do jantar, ocasionalmente por ali surgem, quase sempre ficando-se pelo balcão, em conversa com o empregado.

Naquele dia dos anos 90, só por lá havia dois amigos, na "mesa dois", fazendo horas. Ouviu-se a campaínha, o Juvenal foi abrir a porta e um novo cliente dirigiu-se ao balcão. Os da mesa olharam-no e ele saudou-os.

"Aquela cara não me é estranha ", disse um para o outro. O nome surgiu logo, e era vagamente conhecido de ambos. "Pois é, é ele mesmo!" 

"O homem está ali sozinho. E se lhe disséssemos para vir sentar-se aqui?" Assim fizeram e o novo cliente, já com o copo na mão, trazido do balcão, sentou-se na "dois".

Por alguns minutos, a conversa animou-se, alargou-se a vários temas e pessoas. Foi então que o nome de uma certa personalidade feminina veio à baila. A imprensa de escândalos trouxera, por esses dias, relatos de um envolvimento amoroso dessa pessoa, num registo por alguma razão polémico.

"Nunca percebi o encanto dessa mulher! Para mim, é uma das mulheres mais feias do mundo, um verdadeiro amuleto contra a luxúria", brincou um dos ocupantes originais da mesa, com uma sonora gargalhada.

O amigo que o acompanhava não só concordou como juntou mesmo uma acha mais para a fogueira: "E, se vocês estiverem com atenção, verão que ela até cheira mal..." 

(Por esta altura, imagino que alguns leitores possam estar intimamente a reagir ao inaceitável tom machista da conversa. Aceito que podem ter razão, mas a realidade dos factos, que são verdadeiros, foi aquela e não outra, qualquer que seja os juízos que ela nos motive.)

O tom da conversa, como se observa, ia já muito longe, mas, aparentemente, não o suficiente para convocar a concordância do terceiro parceiro de mesa, que se mantinha silencioso, com um sorriso enigmático. "Você não acha?", perguntou um dos outros, testando a sua adesão ao juízo devastador que acabava de ser feito sobre a senhora.

Foi então que este, com serenidade e sem nunca perder o sorriso, reagiu : "Não estou de acordo! Pelo contrário, é uma mulher muito interessante. Tem mesmo um sorriso muito bonito. Essa foi também uma das razões que me levou a casar com ela..."

O peso do silêncio que deflagrou sobre a mesa, com o olhar encavacado dos dois ocupantes originais a cruzar-se, em busca de uma impossível tábua de salvação, pareceu calar a música "retro", que fazia de som ambiente. O recente parceiro de mesa, veio depois a saber-se, havia sido casado, já há uns bons anos, com a referida senhora e, por indeclinável dever, decidira "ir a jogo" para ajudar salvar a sua honra. 

A conversa, claro!, terminou ali, não havendo saída "honorable" para a gaffe, quando tudo fora já longe demais. "Ó Juvenal, traga uma nova rodada!", foi a reação possível. 

E esta ficou a ser uma das histórias mais famosas da "mesa dois" do Procópio. E é obra, porque ele há tantas...

"A escolha do silêncio"

A expressão em título ficou-me de um daqueles longos arrazoados que um cronista chamado Marcelo Rebelo de Sousa publicava na página dois de um semanário que, há quase quatro décadas, nos habituava a ter notícias frescas. O cronista mudou de ramo e o semanário traz agora opiniões a fingir de "caixas". 

"A escolha do silêncio" foi o título um dia escolhido pelo cronista para qualificar a ausência de palavras de Ramalho Eanes, que ao tempo se refugiava atrás de uns óculos escuros que lhe davam um ar (para mim) pouco sossegante, numa qualquer semana política desses anos 70 ou 80. Eanes optara por não dizer nada sobre uma determinada situação ocorrente e o país, reverente perante aquela intimidante farda política, fazia uma elaborada exegese da ausência da palavra. A hipótese dele não ter nada para dizer nem sequer era colocada.

Lembrei-me, há dias, da expressão, por uma razão completamente diferente, quando estava a almoçar no "Chana do Bernardino", na Aldeia da Serra, na serra da Ossa (um bela opção para refeiçoar, podem crer).

Sentaram-se cinco pessoas numa mesa ao nosso lado: um casal com um filho e uma filha, mais uma empregada. Olhei-os de soslaio, à entrada, e logo os esqueci. Minutos depois, estranhando o silêncio, olhei a mesa. Estavam, os cinco, cada um deles especado a olhar para o respetivo telemóvel. Agitaram-se, por segundos, quando tiveram de interromper as respetivas tarefas individuais para formular os pedidos. Mas logo regressaram, concentrados, ao mutismo absoluto. 

Passou um quarto de hora. Veio a comida. Pai e mãe trocaram umas palavras. Os rebentos, aí com 15 e 12 anos, mantiveram o olhar atento aos ecrans e, com sorte, iam conseguindo espetar uma garfadas nas vitualhas, que emborcavam como mera atividade secundária. A empregada, a quem ninguém deu a confiança de dirigir uma única palavra, pousou por minutos o aparelho, enquanto comeu e olhou a paisagem, através da janela. Alguns sons ecoaram na escolha das sobremesas. Depois, o marido pagou a conta e saíram, sempre num silêncio quase sepulcral, com os miúdos ainda a tropeçar nas cadeiras, sem largar a máquina, seguramente a caminho do banco do carro, onde prosseguiriam a operosa atividade comunicativa e informativa.

Aquela família ilustrava, como ninguém, a "escolha do silêncio", que cada vez mais por aí se pratica. Quantos dos leitores se reconhecem neste retrato? Sinceramente.

quarta-feira, junho 28, 2017

A compra da liberdade

Eu sei que é da lei, mas custa-me ver que alguém que tenha dinheiro "compra" liberdade, por uma caução financeira de algumas dezenas de milhar de euros, enquanto um pobre pilha-galinhas vai parar com os costados à cadeia, sem remissão, por ter roubado fruta.

E há uma outra desigualdade social de que, por "omertà", ninguém fala: aos detidos de certo nível social são concedidas facilidades prisionais em termos de "alojamento", enquanto o comum dos mortais vai para a "vala comum" das celas coletivas. Se a prisão é (também) uma punição, deve ser a gravidade do crime a medida de todas as coisas.

Por que será que este é um assunto tabu? Incomoda abordá-lo? A injustiça também se pratica nas casas da Justiça?

Meu Brasil brasileiro

Desta vez, tudo indica que Michel Temer está naquilo a que no Brasil se chama "uma saia justa". E, no entanto, a sua atitude revela estar ainda a tentar "jogar de salto alto", como lá se diz. Agora, tudo pode acontecer, "até nada!", como também se diz no Brasil...

Fezadas

Há uns anos, um chefe clubista ia pela sucapa a S. Bento da Porta Aberta fazer rezas noturnas, apelando às vitórias do seu clube. (Não sendo "do ramo", devo confessar que sempre achei estranho que alguém rezasse para ter efeitos nestas coisas. Então "lá em cima" são sensíveis a lóbis e a pressõezinhas oratórias? E havendo várias, em sentido contrário, por quem optam? Alguém me há-de explicar isto).
Agora, soube-se que um figurão de outra agremiação parece fiar-se em bruxos guineenses, queixando-se por email quando o "trabalho" não resulta. Isto está bonito, está!
Já só falta ver o presidente do meu clube fazer mezinhas para tentar ganhar na única modalidade que, verdadeiramente, preocupa os sócios - por muito que possam andar entretidos e falsamente eufóricos em matraquilhos e outros genéricos paliativos. O meu clube, já se sabe, é o mais "católico" do burgo: só ganha quando Deus quiser. E Deus parece que não quer, mesmo tendo ele contratado Jesus... A verdade é que o outro também tinha o Espírito Santo e viu-se no que deu!

Parabéns, concidadãos !