sexta-feira, fevereiro 02, 2018

Em três pontos


1. Um dia, na segunda metade dos anos 70, a Embaixada de Portugal em Londres recebeu a visita de um militar de abril, membro do Conselho da Revolução.

Como se impunha, o embaixador ofereceu-lhe uma refeição. O repasto correu de forma simpática, na magnífica sala de jantar daquela que é, sem sombra de dúvidas, uma das mais belas residências que Portugal tem pelo mundo.

Num determinado momento da conversa, o nosso militar deixa cair uma confissão: "Vou contar-lhe um segredo, senhor embaixador: um dos meus maiores sonhos foi sempre poder vir a ser, um dia, embaixador de Portugal em Londres". 

Perante o silêncio protocolar do embaixador, o militar não ficou sem resposta. Um jovem diplomata presente não resistiu e retorquiu: "Tem graça, senhor major. No meu caso, sempre tive como ambição de vida ser comandante da Região Militar Norte"...

O major, inteligente e perspicaz, entendeu o recado. E mudou de conversa.

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2. Não sou bruxo. Mas, em 10 de novembro de 2017, escrevi na minha coluna no “Jornal de Notícias” um artigo de que respigo este extrato:

“Mário Soares confessava ter chegado ao palácio das Necessidades, após o 25 de abril, com fortes interrogações sobre a carreira diplomática que, antes da Revolução, tinha defendido externamente as políticas do regime derrubado, nomeadamente a política colonial. Mas rapidamente se terá apercebido de que, com muito escassas exceções, o corpo de funcionários que o MNE punha à disposição do novo regime era constituído por dedicados servidores públicos, com grande sentido patriótico e lealdade funcional ao Estado. 

A democracia e a estabilidade da sua representação externa muito ganharam com a continuidade que Soares então preconizou e veio a prevalecer. Isso não impediu que, em ciclos políticos diferentes, o novo regime não tenha sido tentado a nomear quase uma trintena de “embaixadores políticos”. Desde 2011, não há nenhum chefe de missão exterior à carreira diplomática portuguesa, mas sinto que a tentação poderá não ter desaparecido por completo nas nossas hostes político-partidárias, da esquerda à direita. Espero que a maturidade da democracia portuguesa seja suficiente para, no futuro, ser capaz de resistir às tentações e que o chefe do Estado disso seja um guardião atento.”

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3. Acabo de ler que o professor António Sampaio da Nóvoa, antigo reitor da Universidade de Lisboa e candidato à Presidência da República - candidatura a que dei o meu apoio público e o meu voto privado - foi indicado pelo governo para vir a assumir a chefia da representação diplomática portuguesa junto da Unesco.

Sem retirar, naturalmente, uma linha que seja ao que escrevi nos pontos anteriores, quero aqui desejar ao meu amigo António Sampaio da Nóvoa as maiores felicidades no futuro exercício do cargo. Tenho a certeza de que o fará com o brilho e o elevado sentido de Estado que sempre demonstrou em todas as funções públicas que até hoje desempenhou. Para o bem de Portugal.

O regicídio na História


Passaram ontem 110 anos sobre a data em que, na esquina da praça do Comércio para a rua do Arsenal, em Lisboa, o rei dom Carlos e o seu sucessor natural foram assassinados a tiro por dois republicanos, eles próprios linchados nos minutos seguintes ao atentado. 

O debate historiográfico nunca conseguiu definir se este acontecimento ajudou, ou não, a acelerar a implantação da República, que viria a acontecer menos de três anos depois. Teria dom Carlos conseguido evitar o que veio a suceder ou o destino do regime estava já marcado? Ninguém o pode dizer com segurança. A única coisa que parece evidente é que as tensões políticas e sociais que desembocaram no regicídio tinham vindo progressivamente a agravar-se e que nada indicava que o regime pudesse vir a gerar condições para passar a uma fase de maior aceitação popular, compatível com a manutenção da coroa na chefia do Estado, em condições político-institucionais sustentáveis. Bem pelo contrário.

O republicanismo, em especial nos setores maçónicos que haviam estado na base de desgaste da Monarquia, manteve, por bastantes anos, uma aura em torno dos autores do regicídio, Alfredo Costa e Manuel Buíça, tidos como mártires da causa. Com o tempo, porém, foi deixando cair discretamente essas referências, talvez por ter entendido que o culto de um ato de violência extrema era um património de memória em crescente perda de aceitabilidade pública.

É compreensível que os monárquicos portugueses continuem a olhar esta data com o sentimento de que ela representou o princípio do fim do regime em que se reviam. Porém, vendo as coisas com um mínimo de realismo, estou certo de que nem eles próprios ainda acreditam, nos dias de hoje, na viabilidade da reimplantação do regime monárquico, embora abandonar essa esperança significasse para eles desistir da própria causa. 

Pode, contudo, especular-se que, se outros tivessem sido os equilibrios no seio das forças armadas portuguesas durante a ditadura, talvez a Monarquia pudesse ter sido equacionada como hipótese. Mas Salazar, não obstante ter óbvias simpatias monárquicas, sempre considerou que esse cenário induziria clivagens entre os militares, os quais, no final de contas, eram a sua guarda pretoriana. De uma coisa não tenho a menor dúvida: se a Monarquia tivesse tivesse sido recuperada pela ditadura, teria caído com ela. 

Como republicano, por mais de uma vez me tenho interrogado sobre como devo olhar o regicídio. E dou comigo a pensar que querer julgar o passado representa uma visão sobranceira por parte do presente, com os padrões de hoje a tentarem prevalecer sobre quem viveu outros tempos e outras circunstâncias. E, assim, deixo ficar o regicídio na História a que pertence.

quinta-feira, fevereiro 01, 2018

O senhor 5%


Calouste Gulbenkian, de quem herdámos - sim, nós fomos os seus verdadeiros e reconhecidos herdeiros! - uma Fundação que é hoje um dos orgulhos do país, era conhecido no mundo dos negócios como o "senhor 5%", por ter conseguido garantir, pelas artes negociais que eram as suas, uma quota de 5% em várias companhias petrolíferas que operavam no Médio Oriente. 

As receitas do petróleo foram, durante décadas, o sustentáculo financeiro da Gulbenkian, em apoio da magnífica obra desenvolvida, que foi basicamente dedicada a Portugal, em domínios muito variados - da arte à música e ao ballet, da ciência à educação, da promoção da reflexão à edição e divulgação do livro e a mil-e-uma outras dimensões da Cultura. Quantos milhares de portugueses não beneficiaram da Fundação, das suas bolsas de estudo, da sua ação no exterior (Paris e Londres), que nunca esqueceu as comunidades arménias, origem do seu fundador?

O petróleo já teve melhores dias e a Gulbenkian teve de reorganizar os seus ativos por forma a garantir recursos fora desse domínio energético. Foi agora anunciada a alienação das participações petrolíferas da Fundação. Só posso desejar à equipa que hoje gere a Gulbenkian, dirigida pela minha querida amiga Isabel Mota, o maior sucesso nesta que será uma etapa diferente no percurso da casa.

Deixo-os com uma fotografia da estátua de Calouste Gulbenkian, que domina o jardim fronteiro à sua belíssima sede. Diz-se que Salazar, cuja relação com o criador da Fundação e seu primeiro presidente, Azeredo Perdigão, não era isenta de algumas tensões, ao ver pela primeira vez essa estátua terá comentado: "O Calouste Gulbenkian parece-me bem. Já o Dr. Perdigão não está lá muito parecido...", referindo-se ironicamente à águia estilizada em pedra que sobrepuja a imagem do fundador.

Educação de adultos


Há uns tempos, contei por aqui a merecida atrapalhação de uma avó a quem ouvi os netos criticarem por não ter estar a respeitar uma fila, num balcão de café. 

Ontem, no Chiado, ouvi, com prazer, um miúdo retorquir para a mãe, que insistia com ele, numa passagem de peões: “Não atravesso! Está encarnado!” 

Tenhamos esperança no futuro!

quarta-feira, janeiro 31, 2018

Cruz de Cristo




Ao final da tarde de hoje, vou estar presente numa cerimónia oficial em que, por razões que não vêm ao caso, terei de usar, na lapela, a insígnia da Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo, distinção com que orgulhosamente fui distinguido, há bem mais de uma década. Trata-se da mais elevada condecoração, na ordem e no grau, que, como servidor público, eu poderia ter recebido - a menos que, patetamente, me considerasse merecedor da Torre e Espada...

Um dia, em França, onde sair à rua sem a condecoração mais elevada que se possua é quase um ato de descortesia cívica, decidi colocar na “boutonnière” a insígnia dessa minha condecoração portuguesa. Fi-lo a título excecional, porque, em regra, usava o Grande-Oficialato da Ordem do Mérito francês, que me foi atribuída em 1986 - e que, à vista de um “maître” de restaurante, sempre me garante logo uma excelente mesa... Mas, nesse dia, por uma qualquer razão, decidi “pôr o cristo”, como no jargão diplomático se diz.

Entrei numa cerimónia pública francesa com roseta vermelha sobre uma fita amarela na lapela da Grã-Cruz de Cristo e reparei que as pessoas olhavam para mim com um ar estranho, entre o surpreendido e o perplexo. Foi então que um amigo, o embaixador polaco em França, um homem que havia sido chefe do Protocolo no seu país e, por essa razão, muito conhecedor dessa coisas, me observou, discretamente: “Francisco, você não deve usar essa sua Grã-Cruz da Ordem de Cristo em França, como sabe...”

Como dizem os brasileiros, nesse instante, “caiu a ficha”! Ele tinha toda a razão! Há mesmo uma legislação francesa, do século XIX, que proibe a exibição pública, no território francês, das insígnias da Ordem de Cristo portuguesa e da Ordem de Cristo da Santa Sé. Eu sabia disso, mas tinha-me esquecido!

Porque é que isso acontece? Por um motivo simples: essas condecorações são exatamente iguais, no tocante à roseta usada na “boutonnière”, à “Légion d’Honneur”, a mais alta condecoração francesa. E porque, em França, quem usar indevidamente condecorações está sujeito a uma potencial prisão, as distinções similares estrangeiras estão banidas. É claro que, cono embaixador, eu nunca poderia ser preso em França, mas, no limite teórico, poderia ser considerado “personna non grata”. se persistisse em usar publicamente a Ordem de Cristo portuguesa.

Retrospetivamente, posso imaginar o que pensou quem me viu com aquela condecoração: como era completamente implausível que eu tivesse a Grã-Cruz da Légion d’Honneur (até hoje, só vi os presidentes da República francesa usarem-na, porque é de atribuição raríssima!), devem ter julgado que estavam a ver mal ou que eu estava a usar um elemento decorativo de muito mau gosto. Fiquei contente, assim, com o aviso do meu amigo polaco.

Contava-se nas Necessidades que, um dia, a um importante diplomata português foi perguntado pelo embaixador francês, numa receção em Lisboa, se a condecoração que ele exibia era a Ordem de Cristo, embora num grau mais baixo do que a Grã-Cruz. O nosso diplomata, "modesto", terá respondido: "Non! Ce n'est que la Légion d'Honneur"!" (é apenas a "Légion d'Honneur")

A cambada do “alegadamente”

Dias felizes são os que vive a palavra “alegadamente”. Alguns plumitivos, injustamente acusados de serem jornalistas (como dizia o Baptista-Bastos), acordaram, nos últimos anos, para o facto de que, utilizada que seja esta palavra, podem acusar quem quer que seja das maiores barbaridades, sem correm o risco de poderem ser considerados caluniadores.

Assim, quando virem escrita ou dita, nas rádios e televisões, a palavra “alegadamente”, caros leitores, já ficam a saber: os factos referidos na notícia não estão provados e quem a propaga e difunde é um cobarde que, não querendo assumir a responsabilidade do que afirma, se esconde canalhamente atrás do vocábulo. Sinal dos tempos. Estejam atentos!

terça-feira, janeiro 30, 2018

Antologia


Alguns simpáticos leitores têm vindo a propor (sem o menor sucesso) que eu passe a livro textos que por aqui são publicados.

Há dias, uns amigos mais chegados (gosto muito da palavra) fizeram-me uma excelente “partida”: editaram e ofereceram-me um exemplar único de uma antologia de textos que por aqui foram já publicados, mas apenas aqueles onde figuram referências a Vila Real e Viana do Castelo. Ficou um belo volume encadernado, com imagens a cor e 430 páginas! 

Gostei imenso, mas nem assim me convenceram a avançar para uma edição mais alargada.

As palavras e os atos


segunda-feira, janeiro 29, 2018

Dias de rei


As monarquias constitucionais europeias colocam um desafio importante aos soberanos de hoje. Tendo perdido, em todas elas, o essencial dos poderes que caraterizaram um outro tempo do exercício do seu papel no Estado, os reis, raínhas e afins funcionam, essencialmente, como fatores simbólicos de representação do país.

Com uma parte significativa da opinião pública - mais nuns países do que noutros - a colocar em causa o princípio dinástico na chefia do Estado, os monarcas atuais vivem sujeitos a uma atenta observação pública. Na minha perspetiva - embora cada caso seja um caso -, alguns monarcas estão sob uma implícita aferição pública da sua “utilidade”, a qual, porque decorrente da crescente dessacralização das suas funções, se torna dia a dia mais exigente.

Passado que foi, há muito, o tempo da sua intocabilidade pela comunicação social, os soberanos e as suas famílias têm de aguentar esse forte escrutínio, porque as sociedades democráticas não olham com bons olhos os privilégios e as mordomias, obrigando-os assim, cada vez mais, a seguirem uma vida que se assemelhe à do comum dos cidadãos. Os gastos com as famílias reais ou similares são hoje objeto de um debate muito estrito, sendo o respetivo comportamento social seguido com um interesse que vai da medíocre coscuvilhice tablóide à compreensível exigência ética.

Além disso, uma coisa é clara: todos os monarcas, no que toca à vida política, seguem por caminho muito estreito, porque a sua cada vez mais discutida legitimidade dinástica em nenhum instante se pode contrapor às instituições com representatividade democrática. Daí que a palavra dos reis e afins seja de “ouro”. Os reis não podem dizer uma palavra a mais e, em especial, essa palavra estará logo a mais se for vista como inadequada.

Aos reis que não necessitam, minimamente, de se mostrar na arena política o que é pedido é que sorriam e representem com dignidade o Estado. Aos outros, àqueles que a conjuntura obriga a intervir na coisa política, exige-se um imenso bom senso. E o bom senso não nasce necessariamente com as pessoas - e os reis são pessoas.

O rei Juan Carlos, num momento delicado da vida espanhola, revelou um bom senso que, lamentavelmente, foi perdendo numa fase mais adiantada da vida. A popularidade da monarquia espanhola perdeu com isso, somada ao comportamento negativo de outros membros da família real.

A Juan Carlos, que abdicou, seguiu-se Filipe, um novo rei que parecia bem preparado e capaz de assegurar a continuidade. Falhou, contudo, logo no primeiro teste sério a que foi sujeito. O que tem dito sobre a Catalunha, bem como o “timing” dessas intervenções, revela falta de respeito por muitos espanhóis, deixando-se acantonar num dos lados da barricada, não percebendo que não é esse o seu papel. Mais recentemente, ao ter suscitado o caso catalão numa intervenção no Forum de Davos, Felipe VI revelou uma imensa ausência de bom senso e de sentido de Estado.

Se as coisas vierem a correr mal na Catalunha, Filipe VI pode ter contribuído para isso. Se correrem bem, dificilmente terá alguma coisa a ver com isso.

domingo, janeiro 28, 2018

Há dez anos...



Caramba! Eu queria mesmo fazer uma festa pelos meus 60 anos! “Sexagenário” é uma palavra que começa bem e acaba mal, mas que nos oferece um título garantido do “Correio da Manhã” em caso de distração urbana: “Sexagenário atropelado...”. 60 anos era uma idade bonita, madura, quase clássica! Impunha-se uma festa “à maneira”, no Brasil, onde eu estava como embaixador.

Mas aquele dia 28 de janeiro de 2008 ia fugir ao meu controlo. É que o príncipe dom João (só seria dom João VI em 1813), dois séculos antes, havia decidido decretar a Abertura dos Portos da colónia, na sua inesperada paragem em Salvador da Bahia, precisamente no dia 28 de janeiro de 1808.

E não é que o brasileiros comemoravam essa data com oficial entusiasmo, tendo o embaixador de Portugal sido convidado a intervir na imensa cerimónia que teria lugar na Associação Comercial da Bahia, em cuja sede, numa parede, figura este imenso quadro de Portinari, retratando a corte recém-chegada de Lisboa? O dever estava antes do prazer!

Assim, “por mor de” dom João, a festa - porque alguma festa houve! - dos meus 60 anos acabou por ser em “petit comité”. Acabámos a jantar serenamente (lembro-me que bem!), com uma amiga e um amigo, no claustro do belo Hotel Convento do Carmo, em Salvador da Bahia. E acompanhados de uma viúva: a “Veuve Clicquot”...

sábado, janeiro 27, 2018

Para trás


Quando se sai, de carro, da embaixada portuguesa em Paris, na rue de Noisiel, é-se obrigado a circundar todo o quarteirão. Quero com isto dizer que somos conduzidos a passar muito próximo do lugar de onde partimos, com a porta da embaixada de novo à vista. Naquele dia 25 de janeiro de 2013, recordo-me bem de que não fui tentado a olhar, por uma última vez, para a porta de onde acabara de sair.

E, no entanto, aquele era o último dia de uma “aventura” que se iniciara mais de 37 anos antes, quando, em 13 de agosto de 1975, ingressara na carreira diplomática portuguesa. Esse percurso profissional terminava ali, aos 65 anos, idade que iria cumprir três dias depois e que, à época, era o limite para a atividade no serviço externo. Estava tudo perfeito: tinha chegado o termo de um trabalho diplomático que me satisfizera plenamente e, em Portugal, esperavam-me outras coisas agradáveis para fazer (não pensava eu que iriam ser tantas, confesso...). 

Mas - lembro-me bem! - não olhei a porta da embaixada, onde, um minuto antes, me despedira de alguns colaboradores que deixei como amigos, porque nunca olhei para trás em qualquer das fases da vida profissional que cumpri. As “coisas” têm o seu tempo e, no final, esses capítulos fecham-se com naturalidade, sem nostalgias, partindo-se para outra. Sem nunca esquecer o passado, a única vida que existe é o dia seguinte.

Entretanto, passaram cinco anos. Nunca pensei que estes anos acabassem por ser tão bons como foram. Um regresso calmo a Portugal, com trabalho, com tarefas agradáveis de diversa natureza, um reencontro mais regular com a família e com os amigos antigos, a criação de muitos novos e bons amigos, mas também viagens, escrita, comidas, conversas, livros, com saúde qb. Ah! E também algumas polémicas, alguns dissídios e, claro, algumas tristezas. A vida, sem sal, seria sensaborona. Repito: em geral, tudo (mais que) perfeito!

Se fosse religioso, dava graças a deus. Não o sendo, dou graças à vida, que tem sido muito generosa comigo e à qual, como toda a modéstia, só vou pedindo uma coisa muito simples, embora essencial: tempo.

sexta-feira, janeiro 26, 2018

Oito ou oitenta


2005. Eu tinha acabado de chegar ao Brasil. Ele era um quadro superior de uma grande empresa brasileira. Tínhamo-nos conhecido horas antes e, como embaixador português, confesso que estranhei a sua excessiva franqueza. Disse-me abertamente ter vergonha de que Lula da Silva fosse presidente do seu país: um quase analfabeto, que falava um português cheio de erros, sem nível para representar uma nação com a ambição do Brasil. Para ele, o contraste com Fernando Henrique Cardoso, que tanto prestigiara a imagem do país, não podia ser mais chocante. 

Fiquei em silêncio. Como diplomata, fui educado a nunca me pronunciar de forma negativa, perante estrangeiros, sobre figuras de Estado do meu país, por pior que eu delas pensasse (e muitas vezes pensei). E, naturalmente, não me associaria a comentários desagradáveis sobre a personalidade junto de quem estava acreditado. Ele não tinha esse constrangimento profissional, mas o bom senso obrigava a algum recato, face a estranhos, em matéria de apreciações sobre a figura que os brasileiros, com toda a liberdade, haviam escolhido, dois anos antes, para a chefia do Estado.

2007. O Brasil de Lula estava na moda, não da internacional “esquerdista”, mas do mundo ocidental liberal, da iniciativa privada. O presidente brasileiro era então uma grande figura internacional, impulsionado por uma diplomacia eficaz, com visão e ambição. Não havia líder europeu que não desejasse uma visita de Lula, que se revelava um construtor de pontes de entendimento na América do Sul, perante o radicalismo de Chavez ou de Morales. O Banco Mundial e a União Europeia elogiavam os programas sociais impulsionados pelo presidente brasileiro, o biodiesel era uma bela promessa ambiental, o pré-sal petrolífero a garantia de um futuro risonho. E, acima de tudo, a economia brasileira parecia imparável.

Num encontro empresarial em S. Paulo, cruzei-me com aquele meu interlocutor. A conversa já era outra. Lula passara a vedeta do G20, a ambição de chegar ao Conselho de Segurança da ONU não parecia desproporcionada. E aquele meu conhecido exultava, claro, com isso. O tom de apreço pelo presidente era em tudo o oposto do anterior. A certo passo, perguntou-me: “Você conhece pessoalmente Lula? Ele é um génio, não acha?” Ri-me intimamente: afinal, o presidente conquistara o afeto do homem. E era óbvio que estava a ser sincero.

2016. Na noite em que Dilma Rousseff foi julgada pela Câmara de Deputados do Brasil, eu estava por acaso em Paris. Ele entrou no Flore e, ao ver-me, fez uma “festa”. “Já viu que aquela petralha da Dilma vai sumir de vez?”, lançou-me, eufórico. Nem lhe perguntei pelo seu “querido Lula”. O vento tinha mudado, de novo.

Lembrei-me dele agora. Deve estar feliz. O Brasil é assim: ou oito ou oitenta.

quarta-feira, janeiro 24, 2018

Lula


É uma tristeza que a justiça brasileira se tenha prestado a uma evidente instrumentalização política, ao serviço objetivo de um certo Brasil, acelerando artificialmente os seus procedimentos, com a finalidade de evitar que Lula viesse a ser candidato e, muito provavelmente, o futuro presidente eleito do Brasil. 

É uma tristeza que um homem como Luiz Inácio Lula da Silva, que devolveu a esperança a milhões de brasileiros, muitos dos quais tirou da fome e da miséria, se tivesse deixado enredar em práticas e comportamentos que o deixaram à margem da exigência ética que a sua história pessoal e política requereria.

É tudo uma imensa tristeza.

Maria Germana Tânger


A poesia - isto é tão discutível como tudo, reconheço - não é algo que seja naturalmente fácil para o gosto comum. Não falo de rimas populares, do versejo vulgar, refiro-me a textos mais sofisticados e complexos, alguns de leitura não unívoca, que é precisamente onde pode residir a sua maior graça. 

Tenho amigos que, embora cultos, são completamente incapazes de ler poesia, não têm paciência para o que consideram ser um modo rebuscado e artificial de escrita. Quando muito, sabem de cor uns versos que os obrigaram a decorar nas seletas - como a “Balada da Neve” - e, de certo modo, fazem disso a caricatura de toda a poesia, o que no fundo lhes disfarça a falta do gosto que não educaram.

Em minha casa, na infância, a poesia fazia frequentemente parte dos nossos serões. O meu pai lia alto - e achava que sabia ler, o que é também um “estilo” para certos amantes da poesia - alguns dos seus poetas preferidos, que, curiosamente, o destino acabou por fazer com que fossem, em regra, muito diferentes dos meus. Mas “dizia” poesia com regularidade, sabendo muitos poemas de cor, habituando-me a ouvir e, por essa via, a também ler poesia. Houve um tempo - a minha fase ”política” de leitor de poesia - em que próprio tinha decorado vários poemas de Manuel Alegre e de alguns poetas do neo-realismo. Nunca agradecerei o suficiente ao meu pai por esse gosto que me transmitiu.

Ainda hoje me faz imensamente bem sentar-me com um livro de poesia na mão. Não é muito frequente isso acontecer, mas, às vezes, passo um bom par de horas saltitando, de livro em livro, “agarrando’ poemas de vários autores. Tenho imensa poesia pelas minhas estantes e tenho vindo a descobrir, um pouco por acaso, alguns poetas contemporâneos, parte deles pouco conhecidos, de muito boa qualidade. Não sou um leitor silencioso, confesso, quase sempre só consigo ler poesia dizendo-a alto, mesmo que só para mim, o que me afasta de alguma poesia de mais difícil sonoridade.

Serve isto para dizer que devo a Maria Germana Tânger, que agora desapareceu, alguma coisa do meu gosto pela poesia, pelo que também lho agradeço, nesta que foi a hora da sua morte. Foi ouvindo-a a ela, nesse outro tempo da nossa televisão, mas também a Manuel Lereno, a João Villaret e, mais tarde, a Mário Viegas e a outros “diseurs” (não apenas portugueses) que ganhei para sempre o gosto por essa forma diferente, mas magnífica, de literatura.

terça-feira, janeiro 23, 2018

Churchill


Ontem, fui ao cinema ver um filme sobre um período da vida de Winston Churchill. Um belo filme, que vivamente recomendo.

Desde a minha adolescência que tenho uma curiosidade quase sem limites pela política interna britânica. Desenvolvi um fascínio pela fantástica história daquele país, uma nação de gente destemida, orgulhosa, com uma maneira muito própria de estar no mundo, que muito nos ajudou e entender a democracia. 

Vivi em Londres anos suficientes para ter podido apreciar aquela gente e o seu particular modo de vida. Posso ter “mixed feelings” sobre os britânicos, posso considerar insensato o Brexit, posso ter mesmo algum desdém face à sua congénita sobranceria, mas reconheço no Reino Unido um protagonista, quase ímpar, da História universal.

Serve isto para dizer que, nesse contexto, nunca fui tocado pelo fascínio que se criou, e tem vindo a ser alimentado, em torno da figura de Winston Churchill. Reconheço o papel polarizador que teve na resistência à agressão nazi, mas, mesmo assim, não consigo encontrar razões para comungar da devoção que, nos dias de hoje, lhe é dedicada por imensa gente. 

Winston Churchill, de que conheço e li o suficiente para saber dele o que julgo necessitar saber, e que faz parte das figuras históricas a quem reconheço uma elevada estatura, é um doutrinário político que me merece muito pouca simpatia. Pelo contrário, é mesmo uma personalidade cuja postura político-ideológica me desagrada e me causa forte rejeição.

Porque penso isto, muito embora saiba que é politicamente correto face aos ventos dominantes pensar o contrário, aqui deixo expressa esta minha posição.

segunda-feira, janeiro 22, 2018

Queixas

Há dois dias, num funeral, naqueles momentos em que sentimos compulsão para dizer uma graça para desanuviar o ambiente, embora ela não possa ser muito forte para não contrastar com o momento de pesar que vivemos, uma amiga que, tal como muito de nós, se sente fortemente desencantada em face das perdas que temos vindo a ter entre os nossos conhecidos, dizia, sorrindo ao de leve: “Devia haver alguém a quem nos pudéssemos queixar desta ceifa...” Uma voz, ao lado, retorquiu: “Sorte têm os que acreditam em algo “lá em cima”, pois têm uma espécie de instância de recurso”. A conversa entre ateus - porque todos eram ateus - prosseguiu com um terceiro interlocutor: “Eh, pá! Mas esses que acreditam nunca se queixam, porque acham sempre que há razões insondáveis...”. Todos concluímos que não há uma ASAE para a morte.

Nouvelle cuisine


Morreu Paul Bocuse, o mais estrelado dos cozinheiros, a figura mais proeminente da “nouvelle cuisine”.

Há semanas, num restaurante, ouvi uma senhora dizer para o empregado: “Traga-me uma dose muito pequena de risotto. Muito pouco...”

O marido, atento, deixou afastar o empregado e comentou: “Foi por haver muitas pessoas como tu que chegámos à “nouvelle cuisine”, àquelas doses microscópicas em pratos imensos...”

É injusto para cozinheiros geniais como Bocuse, mas não deixa de ter graça!

domingo, janeiro 21, 2018

Qual é a pressa?


Há um escândalo - um imenso escândalo! - que ocorre todos os dias nas nossas estradas e auto-estradas, um pouco por todo o país, mas com uma incidência muito particular na zona de Lisboa. E desse escândalo ninguém fala, porque é um tema em que PS, PSD e CDS mantêm um entendimento perfeito, sobre o qual paira um “omertà” de que, estranhamente, a comunicação social é cobardemente cúmplice.

Esse escândalo, esse atentado à segurança de pessoas e bens, é praticado impunemente pelos motoristas dos presidentes da República, dos presidentes da Assembleia da República, dos primeiros-ministros e de quase todos os membros de todos os governos que, por uma qualquer “bula” legal, cuja racionalidade ninguém entende mas também ninguém questiona, se permitem andar pelo país a velocidades astronómicas, às vezes colando o ponteiro aos 200 km/h, pondo em risco a vida de cidadãos inocentes que não têm a menor culpa de que as equipas de “Suas Excelências” não saibam construir as respetivas agendas com tempo e horas. E atrás desses dignitários, lá vão, à mesma velocidade, os carros com chefes de gabinetes, assessores, adjuntos e “tutti quanti” figuras da corte do poder de turno.

No passado, certos membros do governo usavam mesmo, com regularidade, sirenes nos seus carros e há quem se recorde que alguns vinham de Cascais para Lisboa, todas as manhãs, a ultrapassar loucamente em risco contínuo, com um lampião amarelo colocado no tejadilho, qual ambulâncias a caminho das urgências. Hoje, parece que só se usam umas luzes azuis intermitentes, que sentimos no retrovisor quando esses loucos carros oficiais se nos aproximam nas estradas.

Não estou a falar de caravanas oficiais, em determinados momentos de Estado, ou de missões oficiais estrangeiras. Refiro-me a deslocações de rotina, no dia-a-dia, na ida e volta a uma iniciativa a Mortágua ou a Almodôvar ou a A-da-Gorda. Que necessidade há de conduzirem a alta velocidade?

Este é um escândalo de sempre, que tem décadas! Quando há batedores, o risco é menor. Quando não há, os cidadãos inocentes correm perigo (que é de morte!) com essas correrias insensatas e insanas. Há quem argumente que é por uma questão de segurança! Qual quê? Que risco de segurança sofre o Secretário de Estado a Que Isto Chegou? E a nossa segurança não conta? 

Dir-se-á que esses condutores são hábeis e capazes. Ai é? Também eu entendo que posso conduzir com segurança a 160 km/h em imensas retas e, se o fizer, arrisco-me a apanhar pontos na minha carta. Ao cidadão comum, que paga os seus impostos e tem plenitude de direitos, é permitido ser submetido a testes que lhe permitam “acelerar”? Estou convencido que, fora desses motoristas, deve haver muita gente que sabe conduzir igual ou melhor do que eles.

Um dia disse alguém: “Qual é a pressa?” Por que será que ninguém quer falar disto? 

(Já estou a presumir um comentário: “Nos cinco anos e tal que ele esteve no governo também devia andar por aí “a abrir” “. Pois enganam-se! Todos os motoristas que comigo trabalharam tinham estritas instruções para não excederem a velocidade legal.)

sábado, janeiro 20, 2018

Angola e os seus consulados

Será ignorância da nossa imprensa ou será algo mais? 

Ficou-se a saber que, num documento interno de reflexão, o assessor diplomático do presidente angolano suscitou a ideia de encerrar alguns consulados daquele país em Portugal. 

Quererá isto dizer que vai acabar o apoio consular aos largos milhares de angolanos no nosso país? Ou será que o novo poder angolano pode estar a tentar acabar, por essa via, com a dualidade, até agora existente, entre a embaixada angolana em Lisboa e as estruturas de representação consular do país em Portugal? 

Porquê? Porque alguns consideram, e entre esses “alguns” poderá estar o novo poder em Luanda, que é importante colocar sob o claro comando do embaixador angolano em Portugal as atuais estruturas consulares. Como? Por exemplo, criando secções consulares na embaixada angolana em Portugal, ou terceirizando serviços, como muitos países fazem um pouco por todo o mundo.

Será assim tão difícil de entender isto ou dá grande jeito, a um jornalismo especulativo e sensacionalista, criar a ideia de que esta decisão de rearranjo funcional é um ato hostil a Portugal? Alguém procurou o contraditório sobre esta “notícia” ou isso é já um preciosismo de “velho jornalismo”?

Os EUA, a ONU e Gaza

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