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terça-feira, janeiro 29, 2013

O preto?

Certeiro e desassombrado, Ferreira Fernandes aborda hoje, na sua crónica no "Diário de Notícias", a ridícula polémica que por aí se desencadeou, por virtude de um comentário do líder da CGTP, Arménio Carlos, que teve a "ousadia" de anunciar assim o regresso da "troika": "vêm aí outra vez o três reis magos: um do BCE, outro da CE e o mais escurinho, do FMI". Algumas vestais saíram logo a terreiro com a alegação de que a referência ao "mais escurinho" era uma pura manifestação de racismo.

Confesso que tenho cada vez menos paciência para o "politicamente correto" e para o modo policiesco como alguns olham qualquer frase que, remota ou diretamente, toque um conjunto de temas que se convencionou colocar numa espécie de redoma.

Um dia, em Angola, estava numa festa no Hotel Panorama, a que tinha ido com um grande amigo angolano, Manuel Domingos Augusto, hoje membro do governo daquele país. A certa altura, chamei-lhe a atenção para uma pessoa que estava do outro lado da sala, que eu tinha a ideia de conhecer de qualquer lado. Expliquei que era "aquele tipo baixo, de casaco escuro, encostado à janela". Havia duas pessoas nessas condições, pelo que foi preciso dar outro pormenor: "o que está a fumar". Aí o Manel reagiu: "Ora bolas! É o preto? Já podias ter dito...". Era, mas eu, "travado" pelo politicamente correto, estava a hesitar dizer isso ao Manel, ele próprio bem negro. Nada como gente sem complexos para nos colocar à vontade.

Por este andar, um destes dias, ainda alguém nos vem chamar a atenção se dissermos que "a coisa aqui está preta". E não está?

domingo, novembro 18, 2012

Demasiada memória

Há dias, um amigo dizia-me, levemente crítico, que eu tinha "demasiada memória". Para logo esclarecer: "é que tu lembras-te, às vezes, de certas coisas que mais valia a pena teres esquecido...". Talvez seja verdade. Com frequência, tenho esse tropismo de me recordar de assuntos que outros arquivaram em dossiês de conveniência, que não querem voltar a consultar. Como os leitores deste blogue já se devem ter apercebido, não o faço para visar especificamente ninguém, mas apenas como testemunho de quem acha que, sobre o que conhece, deve tentar "to set the record straight".

Vem isto a propósito de um recente editorial do "Jornal de Angola" que provocou algumas ondas de choque em Portugal, felizmente tratadas já com bom senso e sentido de equilíbrio.

O tema, contudo, fez-me "regressar" a Luanda, aos mais de três anos que por lá passei, entre 1982 e 1986, quando servi na nossa embaixada local. As relações oficiais entre Portugal e Angola eram então muito tensas, fruto da terrível guerra civil que marcava ao quotidiano angolano e da circunstância de certos setores da oposição ao governo de Luanda terem Lisboa como palco privilegiado para a sua afirmação pública. 

A argumentação de que muitos dos titulares das posições do partido do "galo negro", da UNITA, tinham nacionalidade portuguesa e de que, por essa razão, nada os impedia de se reunirem politicamente em Lisboa e daí atacarem, nos nossos media, o governo angolano, não era aceite, porque as autoridades angolanas entendiam que os sucessivos executivos lisboetas tinham o dever político de não permitir a expressão dessas vozes, que davam cobertura a um movimento que combatia, de forma violenta, o poder instalado em Luanda.

Debalde nós tentávamos explicar aos nossos interlocutores locais que a liberdade de imprensa era uma conquista daquele mesmo 25 de abril que abrira caminho à independência angolana e que, no nosso país, nenhuma ideologia, nem nenhum político, estava isento de ácidas críticas, a começar pelos próprios membros dos nossos governos. Mas essa uma "guerra" perdida, nos tempos em que uma certa elite lusitana mantinha um persistente fascínio por Jonas Savimbi, que então organizava os seus "Jamba tours", de onde esses convidados saíam deliciados com tudo o que por lá os deixavam ver, desde logo a começar pelo patético "sinaleiro" (que nos dava um jeitaço, agora, no Marquês!). E ai de quem os tentasse então convencer de que, por detrás da sua suposta bonomia africana, Savimbi era um promotor de atrocidades, hoje bem documentadas e incontroversas. 

À época, os editoriais do "Jornal de Angola" contra Portugal sucediam-se. A embaixada portuguesa em Luanda optara por não reagir, deixando que essa catarse mediática não fosse estimulada por um contraditório que se via como de escassa eficácia. Por isso, líamos matinalmente essas colunas agressivas e, através delas, apenas íamos medindo a febre de acrimónia contra Lisboa, esperando que o tempo a atenuasse, como fe facto acabou por suceder. 

Um dia, vi publicado um texto de rara violência, já não sei bem a propósito de quê. Nele se referia que Portugal, crismado como o "miserável país das caravelas decrépitas" (nunca esqueci esta flor de retórica lusofóbica), era um colonizador frustrado, porque, contrariamente a outros, não deixara em Angola nenhuma herança positiva.

Sem consultar o meu embaixador, tomei a iniciativa de telefonar ao autor do texto, uma pessoa que eu tinha tido ocasião de conhecer pessoalmente, através de amigos angolanos. Era um jornalista e escritor de bastante mérito, nascido em Portugal, creio que em Loures, que vulgarmente usava um pseudónimo que substituía o seu nome português, como então era vulgar em Angola. Disse-lhe que tinha lido o seu texto com interesse e que queria "felicitá-lo" pelo mesmo.

Do lado de lá da linha, a resposta foi a esperada: "Você está a gozar comigo?". Respondi-lhe que não estava e que o texto, cuja liberdade de apreciação sobre Portugal eu não contestava, comportava, contudo, uma evidente contradição, de que ele talvez não se tivesse dado conta, mas que era a única razão do meu telefonema. O meu interlocutor estava cada vez mais perplexo, até pela deliberada cordialidade que atravessava o meu discurso.

Pelo que decidi explicar: "O seu texto, independentemente do conteúdo agressivo contra o meu país - o mesmo, aliás, onde você nasceu -, está extremamente bem escrito e exprime, de forma brilhante, uma leitura crítica face ao comportamento do meu governo. Embora eu não concorde, rigorosamente em nada, com aquilo que escreveu, quero dizer-lhe que entendo que você está no pleníssimo direito de exprimir o que pensa, embora eu imagine o que "por aí iria" se, lá em Lisboa, o "Diário de Notícias", que nem sequer é um jornal oficioso como o seu, se abalançasse a escrever um coisa de natureza similar sobre o governo angolano. Mas não é essa, hoje, a minha questão. O que eu queria sublinhar é que o texto está redigido num português exemplar, numa escrita de grande elegância estilística. Ora você diz, nesse mesmo texto, que nada ficou em Angola de herança lusitana! E essa língua em que você escreve tão bem? É uma herança de quem? Ou será que você é capaz de escrever um editorial em quimbundo, em umbundo ou em chocué, que qualquer angolano que saiba ler possa perceber? E em que língua se publica o "Jornal de Angola"? Que outra língua une hoje Angola? Essa é ou não é uma herança do tempo colonial?".

Já não me recordo da resposta do meu interlocutor, que terá sido, com toda a certeza, inteligente e informada, porque era alguém com uma grande qualidade intelectual e política. Uma figura infelizmente já desaparecida.

Esses tensos tempos na relação entre Luanda e Lisboa já passaram, há muito. O bom senso, o fim dos traumas da era das armas, a afetividade natural entre as gentes dos dois lados, a diluição da crispação que a queda dos muros ideológicos proporcionou e, acima de tudo, a emergência de importantes interesses mútuos, tudo isso conduziu ambos os países a patamares novos de entendimento, assentes num diálogo político construtivo e maduro. Portugal está hoje em Angola com gentes e capitais, tal como Angola participa, com toda a naturalidade, na vida económica portuguesa. Ainda bem que as coisas assim são. Tudo isso tem como corolário inescapável a necessidade do respeito mútuo pelas respetivas instituições nacionais e, em ambos os lados, pela plena liberdade de expressão e de crítica. A mesma liberdade que, a mim, me permite de citar hoje aqui esta historieta, que dedico aos bons amigos que deixei por Angola, alguns que até fazem parte do seu atual governo e que recordo com esta minha "demasiada memória". 

segunda-feira, agosto 06, 2012

Diplomacia e ping-pong

Devo dizer que ontem fiquei muito surpreendido - positivamente surpreendido - com a excelente prestação dos nossos jogadores de "ping-pong" (dizer "ténis de mesa" acho normal, mas chamar à modalidade "tenisdemesismo" como ontem surgiu na televisão, é de um ridículo atroz) nas Olimpíadas. Não fazia a mais leve ideia de que o desporto tivesse evoluído tanto, em Portugal.

Veio-me à memória, neste contexto, que a Embaixada de Portugal em Luanda organizou, nos anos 80, um torneio de ping-pong entre todos os seus seus funcionários. Chefiava aquela nossa imensa missão diplomática o embaixador António Pinto da França, que conferia ao trabalho uma dinâmica muito pouco usual, feita de empenhamento profissional e da geração de um excecional ambiente de relações humanas. Leia-se, a este propósito, o seu divertido (e bem instrutivo, para se perceber Angola) diário de Angola*, a que se seguiu a publicação do um outro diário sobre a anterior estada na Guiné-Bissau**, a que só não faço excessiva publicidade porque fui o autor do prefácio.

Julgo que a ideia do torneio foi do nosso colega Júlio Vasconcelos, tendo merecido grande entusiasmo por parte de toda a gente, numa terra onde havia muito pouco de lúdico para fazer. Juntaram-se várias ofertas para prémios, que já não sei bem como foram obtidas, numa Luanda onde havia uma quase total ausência de bens à venda nas lojas. O embaixador anunciou-nos que decidira contribuir para os prémios do torneio, com a oferta de uma dúzia de garrafas de um vinho da Adega Cooperativa de Tomar. Tratava-se de um temível "néctar" cuja mais notória qualidade tinha sido consagrada como "bom para decapante"- expressão consagrada pelo Fernando Andresen Guimarães, pelo José Guilherme Stichini Vilela e por mim próprio -, tal a sua acidez e agressividade no paladar. Nos frequentes e muito simpáticos almoços e jantares promovidos pelo embaixador na sua residência, o tal vinho "imbebível" surgia, a espaços, à mesa, o que logo nos levava a uma forçada e conjuntural abstinência, feita sob a troca de olhares cúmplices entre nós, com alguma surpresa do embaixador, que observava incrédulo a nossa conversão coletiva a uma pontual cura de águas.  

Como "vingança" pela presença do nabantino produto, surgiu então, entre nós, uma ideia. Decidimos que o 3º classificado do torneio de ping-pong teria direito a 7 garrafas, o 2º classificado a 4 garrafas e o 1º classificado seria "punido" apenas com 1 garrafa, cumulados com outros prémios. (O critério seguia uma historieta, à época famosa, sobre os supostos "prémios" atribuídos pelo PCP a jovens "pioneiros", que entravam num concurso: o 3º classificado tinha tido direito a três semanas de férias na Bulgária comunista, o 2º classificado a uma semana e o 1º classificado a um fim-de-semana.)

E lá teve lugar a cerimónia de entrega dos prémios, presidida pelo próprio embaixador. Nunca percebemos se ele se deu conta do estranho critério de premiação seguido. Nada nos disse, mas todos ficámos com a sensação de que poderá não ter apreciado excessivamente o nosso gesto de humor, que apenas pretendia transmitir um subtil protesto... Um destes dias pergunto-lhe!

* "Angola, o dia-a-dia de um embaixador, 1983/1988
** "Em tempos de inocência - um diário da Guiné-Bissau"

sábado, julho 07, 2012

O senhor comandante

Aquelas longas noites do Hotel Trópico, em Luanda, nos primeiros meses de 1982, há precisamente 30 anos, eram uma verdadeira "seca". Eu sofria o choque cultural de uma mudança direta, do meu posto na organizada Noruega. para a então caótica Angola. Por quatro longos e não saudosos meses, por ali me instalei.

Pelas salas do Trópico, fui conhecendo alguns portugueses, grande parte deles expatriados por razões empresariais, por semanas ou meses, que atenuavam a sua solidão na leitura de alguns jornais (que não se vendiam localmente mas que me chegavam por mala diplomática, e que frequentemente lhes emprestava), na conversa, a ouvir música ou em jogos de cartas.

Um dos bons amigos que fiz nesse ambiente, e que infelizmente perdi de vista desde então, era o Hélder Martins, funcionário da STAR. Numa dessas noites, o Hélder convenceu-me a alinhar numa mesa de sueca que se criara entre alguns clientes. Sou um completo incapaz para toda e qualquer espécie de jogos de cartas, mas, até à sueca, consigo "chegar". A única atividade lúdica alternativa - o visionamento, numa minúscula televisão a preto-e-branco, de alguns jogos do campeonato do mundo de futebol, que então estava a ter lugar em Espanha - tinha-se esgotado, pelo que me decidi a entrar na jogataina. 

No grupo, havia um homem jovial, falador, bem mais velho do que nós, de S. João da Madeira, que representava uma empresa de calçado. A meio do jogo, ao pedir uma rodada de bebidas, vi que, apontando-me, disse para o empregado: "Ali para o senhor comandante, é uma cerveja". De facto, eu tinha falado, instantes antes, que me apetecia uma "Cuca", mas estranhei ser qualificado de "senhor comandante". Olhei para o Hélder Martins, que sabia perfeitamente que eu era diplomata na nossa Embaixada, mas não notei na cara dele nenhuma surpresa pelo título com que eu tinha sido brindado. Optei por não reagir.

No dia seguinte, no almoço no Trópico, perguntei ao Hélder: "Você não achou estranho que aquele tipo, ontem, me tivesse tratado por 'senhor comandante'?". O Hélder retorquiu-me que não. É que, sabendo que eu tinha feito o serviço militar, por conversas anteriores entre nós, presumiu que, nessa qualidade, eu tivesse servido na Marinha, pelo que havia deduzido que o homem de S. João da Madeira sabia disso. Expliquei-lhe que a minha "arma" era bem mais prosaica, que eu havia sido oficial de "administração militar" no Exército, onde a minha especialidade era "ação psicológica", que nunca havia sido sequer "comandante de pelotão". Rimo-nos um bom bocado, pelo que permanecia o mistério do "comandante". Mas ambos esquecemos o assunto.

Passou, talvez, um mês. Por diversas razões, deixei de frequentar as salas de estar do Trópico com tanta frequência. Uma noite, voltei a ver por lá o homem de S. João da Madeira, que me saudou, ao longe. No dia seguinte, o Hélder Martins foi abordado por ele. Queria que me "metesse uma cunha": não tendo confiança comigo para me colocar, pessoalmente, o pedido, aproveitava a intercessão do Hélder, para, junto de mim, conseguir um "OK" para o voo da TAP para Lisboa, no dia seguinte. O avião estava cheio e "aquele seu amigo pode ajudar, como ninguém, a desenrascar-me o lugar", disse ele. 

O Hélder surpreendeu-se. "Mas porquê ele?", perguntou. "Então, sendo ele comandante da TAP, deve poder conseguir isso, não?". "Comandante da TAP? Ele é diplomata na Embaixada de Portugal!", reagiu o Hélder. "Ai é?! É que, há dias, vi-o à conversa com uma hospedeira da TAP, no bar do hotel, e fiquei com a ideia que ele fazia parte da tripulação, que sempre ali se aloja...". 

("For the record", que fique claro que a minha conversa com a hospedeira foi casual e bem inocente, não me recordando de ter assumido nenhuma particular familiariedade com a "colega"...)

Ainda há dias, ao viajar na TAP e ao ouvir, pelo altifalante do avião, aquela "rassurante" mensagem com que os comandantes se dignam saudar os passageiros, a meio do voo, veio-me à memória que também "fui", um dia, "comandante" da companhia.

quinta-feira, janeiro 26, 2012

Prognósticos

Com crescente regularidade, amigos e conhecidos portugueses perguntam a minha opinião sobre o possível desfecho das próximas eleições presidenciais francesas. Lamento sempre não poder satisfazer a sua curiosidade, mas a verdade é que um diplomata estrangeiro não sabe, sobre este assunto, mais do que... os franceses, que são quem acabará por escolher o seu presidente, para os cinco anos seguintes. E eles também não sabem...

Se há algo que aprendi na vida diplomática foi relativizar a minha própria opinião. E a não acreditar na minha presciência. Uma das vantagens da rotação regular dos embaixadores, entre os vários postos, tem a ver com a necessidade de produzir olhares novos sobre a realidade local. A experiência mostra que um diplomata que se eterniza num posto, independentemente de poder, por essa via, garantir um grande conhecimento da vida e da sociedade do país, de criar uma rede forte de interlocução e teste de ideias, pode também facilmente acabar por "go native" (isto é, passar a ter as reações de um local) ou perder o rigor na perspetiva de observação das mutações no país onde está acreditado. É que, rotinado numa certa leitura, um diplomata que fique por muito tempo num posto pode não estar aberto ao surgimento de novas realidades ou, confrontado com elas, pode ser tentado a rejeitá-las por as considerar incompatíveis com a grelha de observação em que se viciou.

Há uma história, auto-crítica, que costumo contar, passada comigo em Angola, nos anos 80. À chegada do novo embaixador, António Pinto da França, desenhei-lhe um quadro muito completo da relação de forças no seio do comité central do MPLA. Expliquei-lhe quem era quem, o que cada um representava, qual a política de alianças de grupos que prevalecia, tudo isso com o objetivo de apontar para aquilo que iriam ser as mudanças na liderança angolana, a ocorrerem no próximo congresso do partido.

O novo embaixador tomou nota mas, por si próprio, com os conhecimentos que entretanto foi criando, começou a fazer as suas próprias avaliações e juízos. Passado algum tempo, dei-me conta de que os telegramas que enviava para Lisboa, sobre a situação política interna angolana, começavam a afastar-se da linha que eu tinha como correta. Mais: a sua leitura sobre as personalidades que iam subir ou descer no próximo congresso do MPLA começava a divergir fortemente daquela que eu, observador com mais de três anos da vida política local, considerava dever ser transmitida às nossas autoridades. Isso preocupava-me. As minhas fontes, que tinha por excelentes e testadas, eram perentórias sobre as hipóteses de evolução tendencial do equilíbrio político, mas eu não conseguia convencer disso o meu embaixador. Não querendo contrariá-lo, lembro-me de ter trocado impressões sobre o assunto com outros diplomatas em posto, com vista a que o tentassem chamar à razão, reverter o caminho errado pelo qual prosseguia nas suas análises, cada vez mais diferentes das minhas. Mas não tive qualquer sucesso.

"To make a long story short", como dizem os anglo-saxónicos, as coisas passaram-se exatamente como o embaixador António Pinto da França as estava a ver e não como eu pensava que elas iam ser. O tempo em posto, por vezes, "desajuda" mais do que favorece.

Mas, afinal, qual é a minha perspetiva sobre o que sucederá politicamente em França, neste primeiro e decisivo semestre? O que penso sobre o assunto reservo-o, naturalmente, para as minhas autoridades. Mas devo adiantar que, nesta matéria, é capaz de ser prudente seguir o famoso preceito daquele lateral-direito de uma equipa do norte que, perguntado sobre como via a partida que o seu clube ia disputar, adiantou, com simplória sabedoria: "Prognósticos? Só no fim do jogo".   

segunda-feira, novembro 28, 2011

A TAP e eu

Ontem, fui visitar a TAP nas suas novas instalações em Paris, numa espécie de "inauguração" oficial, um pouco atrasada no tempo, mas feita com o maior dos gostos. Porque eu, confesso, gosto muito da TAP.

Tendo embora uma sólida conta de viagens aéreas em dezenas de companhias, devo dizer que me sinto sempre muito bem quando viajo na TAP. Outras empresas têm aviões mais confortáveis, muitas tiveram ou têm um serviço requintado que a TAP nunca atingiu nem atingirá, mas a TAP é "cá da casa", faz parte daquilo que nos habituámos a identificar no estrangeiro como português - como o pastel de nata, o fado ou a Vista Alegre. Fico satisfeito quando vejo os aviões da TAP nos aeroportos, nunca hesito quando a posso escolher como opção. É, além disso, um belo cartão de visita do país, uma companhia cada vez mais pontual, com um "record" de segurança invejável.

Porque tenho a TAP como "da família", perco mais facilmente a paciência com ela do que com outras companhias, detesto a displicência e os "pontapés na gramática" (principalmente francesa) nas mensagens lidas pelas hospedeiras, tal como fico furibundo com a arrogância das greves que afetam as viagens dos portugueses expatriados, que querem visitar as famílias nas festas ou nos verões. Mas acabo sempre por perdoar.

Nos postos diplomáticos em que estive, sem exceção, mantive sempre um excelente relacionamento com as pessoas da TAP, a quem só fiquei a dever simpatia. Talvez o Brasil tenha sido o país onde, porventura, a minha ação possa ter sido mais útil à TAP, a qual, nessa época, "disparou" em direção a várias cidades brasileiras, tornando-se na verdadeira "ponte" transatlântica que sucedeu ao fim triste da excelente Varig. 

Da vida, todos guardamos na memória alguns momentos especiais de bem-estar. Um dos meus liga-se à TAP. 

Em 1983, eu estava em Luanda, já há nove meses seguidos. Era uma cidade difícil, com imensas carências materiais, num tempo de guerra civil, com recolher obrigatório e a necessidade de limitarmos as nossas deslocações a um perímetro de segurança, já de si relativa. A vida em Angola era complicada, a assistência médica deficiente, o conforto relativo, as tensões, políticas e outras, eram pesadas de suportar. Ao final de todo esse tempo contínuo, de intenso trabalho, já saturado e algo stressado, vim de férias a Portugal. E recordo, como se fosse hoje, o prazer que me deu sentar-me, confortavelmente, num dos (então a estrear, hoje já desaparecidos) Lockheed 1011 TriStar, saborear um gin tónico e, pelos auscultadores de bordo, ouvir, pela primeira vez, Ivan Lins e Sérgio Godinho cantar, de um disco que eu ainda não tinha, "Que há-de ser de nós?".

A TAP vai em breve estar perante algumas escolhas de futuro. Só podemos esperar que a opção que viera ser tomada lhe preserve a qualidade e a sua identidade nacional. Tal como na canção, muitos nos perguntamos: que há-de ser da TAP? 

terça-feira, agosto 30, 2011

Geografias

Na passada semana, o "Libération" trazia um longo artigo sob o título "Angola, quartier d'esclaves", com fotografias antigas, a preto e branco. Preparava-me para ler mais uma catilinária sobre a política colonial portuguesa quando, pelo texto do que veio a revelar-se um interessante artigo, fiquei informado de que, no fim do século XIX, terá sido criada, no Estado americano da Louisiana, aquela que foi considerada, por muitas décadas, "a pior prisão da América". Teve o nome de "Angola" por ser esse o nome que o anterior proprietário do terreno teria dado ao local, pelo facto dos escravos que aí tinha serem provenientes daquela antiga colónia portuguesa (o que, historicamente, parece um pouco estranho, convenhamos). "Angola" foi uma pentenciária bárbara, onde morreram violentamente muitos condenados, sujeitos a incontáveis violências. E por lá havia um cadeira elétrica. Dois jornalistas, nos anos 30, revelaram que, à época, aquele era "o lugar do mundo que mais se aproximava da escravatura". A prisão "Angola" ainda existe, nos dias de hoje, embora com outras condições.

Num registo bem mais pacato, mas que também se liga a nós, não quero deixar de assinalar que, num interessante livro, acabado de sair, que compila documentos essenciais para a compreensão da relação franco-alemã na altura da reunificação ("La diplomatie française face à l'unification allemande"), vim ontem a deparar com o curioso nome do principal especialista em assuntos alemães do Comité Central do então quase moribundo PCUS. Chamava-se Portugalov. Fui tentar perceber de onde poderia o homem ter tirado o nome. Uma fonte aponta para os Portugalov serem descendentes de judeus expulsos de Portugal no final do século  XV. Esta explicação pode ser lida aqui.

A imagem que ilustra este post, para muito leitores, provavelmente nada terá a ver com ele. O que, se calhar, é verdade. É apenas uma fotografia feita, há dias, em Lisboa (onde?), por uma amiga. E como gosto delas (da amiga e da fotografia) decidi publicá-la. Liberalidades a que se pode dar quem gere um blogue sem agenda...

domingo, junho 12, 2011

Fado nos trópicos

Naqueles tempos, as relações políticas entre Portugal e Angola eram muito tensas, fruto conjugado de diversas circunstâncias, só parte das quais assentes na racionalidade das coisas, a qual ainda demoraria algumas décadas para se impor. A comunidade portuguesa atravessava então um período de alguma insegurança, pelo que a comemoração do Dia de Portugal constituía um importante momento para a sua união. Por parte da nossa embaixada, era também uma ocasião para fazer passar uma mensagem de confiança e esperança.

Foi isso que pensou o embaixador António Pinto da França, que era e é a personificação de um homem de boa-vontade, o qual havia chegado a Angola disposto a tentar o impossível para aproximar os dois países, superando o ceticismo, quase desanimado, de alguns dos seus colaboradores, que, depois de muito terem porfiado em remar contra a maré, já só achavam que "não há nada a fazer!". Afinal era ele que estava cheio de razão, como o tempo viria a provar.

Num desses "Dia de Portugal" organizado para nossa embaixada em Luanda, António Pinto da França decidiu convidar, para fazer um espetáculo para a comunidade, uma fadista na altura em voga no nosso país - Luz Sá da Bandeira. O fado é uma linguagem musical que, para além de alimentar o sentimento dos portugueses expatriados, poderia ter como potencial condão fazer despertar, em alguns setores angolanos, memórias subliminares que ajudassem a minorar a crise de afetividade que então se atravessava. Na verdade, só eu, com a frieza político-estratégica que vinha dos tempos da "ação psicológica", havia pensado as coisas dessa forma. O embaixador Pinto da França, com a sua sensibilidade diplomática apurada, havia considerado, muito simplesmente, que um bom espetáculo de fado ficaria bem, para juntar os portuguses e convidados, nesse 10 de junho.

Mas essa opinião não era generalizada. Alguém expressou discretas reticências quanto à bondade da escolha daquela cantora. Por razões de natureza musical? Não, apenas pelo seu nome. Essa pessoa comentou - nunca se percebeu se totalmente a sério - que o nome de "Sá da Bandeira" poderia soar como estranho aos ouvidos mais militantes da política local, cujo regime tinha caprichado, anos antes, em mudar o nome da cidade angolana de "Sá da Bandeira" para "Lubango".

O assunto, porém, logo morreu por aí, entre gargalhadas. Ninguém chegou ao ponto de pensar mandar imprimir cartazes e convites para uma sessão de fados de "Luz Lubango"...

quinta-feira, maio 05, 2011

Angola e o Corredoura

Ontem à noite, alguns embaixadores e diplomatas dos países da CPLP, depois de uma comemoração na UNESCO, juntaram-se em casa do embaixador angolano em França. Foi interessante ver como uma língua comum une, com facilidade, o humor e o sentimento, garantindo horas de boa disposição e de são entendimento.

A certa altura, falámos da Angola de outros tempos, da guerra civil, dos períodos de grandes dificuldades que afetavam então a vida quotidiana em Luanda, uma cidade sitiada, com frequentes cortes de água e luz, com recolher obrigatório.

Nesse tempo, de inícios dos anos 80 do século passado, vivi por alguns meses no Hotel Trópico, na capital angolana. Nele se acolhiam muitos estrangeiros, em especial portugueses em negócios. Com o cônsul-geral e com o ministro-conselheiro da embaixada, eu almoçava e jantava, quase por regra, no "grill" do hotel, uma facilidade rara, que não era estranha à nossa invejada condição diplomática. Nesse tempo, obter uma "reserva" para o "grill" era uma benesse pouco comum, muito apreciada pelos portugueses e angolanos que para lá convidávamos. Diga-se que esse privilégio acontecia não obstante as tensões políticas que, à época, marcavam fortemente as relações entre Lisboa e Luanda, o que só revela que alguma afetividade, fruto de certas cumplicidades, se sobrepunha à conjuntura política.

Com algum exagero, o humor corrente afirmava que, no restaurante normal do Trópico, havia, ao almoço, "arroz com peixe frito" e, ao jantar, "peixe frito com arroz". No "grill", as coisas era ligeiramente melhores, mas a variedade de menus não ia muito longe. Longe, sim, iam os tempos em que os grelhados haviam dado nome ao local. Recordo apenas um cíclico "émincé" de vitela e o sempre presente bolo Trópico, uma espécie de pão-de-ló coberto com claras de ovos, que fechava a maioria das refeições.

O "chefe de sala" era um velho e simpático angolano que havia trabalhado no "Café de Paris", em Lisboa, o Smith. Quando perguntado sobre o menu do dia, costumava ironizar sabiamente, respondendo coisas como: "Eu hoje aconselhava um magnífico caldo verde, seguido de um bacalhau à lagareiro. Depois, teremos um bife à marrare. E fecharemos com um pudim abade de Priscos, que está "de truz" ". Esses e outros pratos virtuais, que se deliciava a relembrar, com expressões do léxico luso, fruto da sua longínqua memória da culinária e da vida lisboeta, logo contrastavam com as limitações do pobre menu do dia, a única realidade a que iríamos ter direito.

O vinho era, invariavelmente, o mesmo: português, de uma marca que nunca esquecerei, de que nunca mais ouvi falar - Corredoura. Não o retive, contudo, na minha memória sensorial como um néctar digno de figurar na história vinícola portuguesa, embora, nas condições locais, a minha escala de valores em matéria de consumo tivesse então atingido generosos limites de complacência.

O serviço às mesas do "grill", chefiado pelo Smith, coadjuvado pelo excelente Sambo, era feito por alunos da escola de hotelaria local, que rodavam com grande frequência. Eram jovens muito simples, inexperientes, terreno fácil para ensaiarmos algumas graças. A piada cíclica era perguntar ao jovens alunos: "Há vinho?". A resposta era sempre positiva, como já sabíamos. Essa era então a oportunidade para que um de nós lançasse, variando cada dia de fórmula, uma coisa assim: "Hoje, estava-me a apetecer um vinho português. Um maduro tinto. Por acaso não tem um Corredoura, não?". Ou assim: "Para acompanhar o almoço, traga-me um tinto. Pode ser Corredoura, tem?"

Os olhos dos ingénuos e solícitos rapazes brilhavam de felicidade. "Por acaso" tinham - esse que era o único vinho existente, à época, em toda a Angola, "de Cabinda ao Cunene", para utilizar um lema então em voga. E, minutos depois, a uma temperatura "impossível", lá surgia, saído da cave, um Corredoura tinto.

Consumimos hectolitros de Corredoura. Provavelmente esgotámo-lo. Deve ser por isso que nunca mais ouvi falar desse vinho. E, devo confessar, vá-se lá saber porquê, não tenho nenhumas saudades dele.

sábado, abril 23, 2011

Otelo

Algumas pessoas espantam-se com afirmações recentes de Otelo Saraiva de Carvalho. 

Vale a pena notar que nada de isto é novo. Todos os anos, pela primavera de abril, alguma imprensa vai desencantar Otelo, que, honra lhe seja!, não se furta a aproveitar esse warholiano nicho de cíclica visibilidade para dizer umas coisas ao lado do "politicamente correto". Já faz parte da "saison". Os "abrilistas" entram em agonia, os seus detratores deliciam-se com o que acham serem os deslizes do ex-militar. Passa abril e Otelo volta a desaparecer. Até para o ano.

Não podemos pedir que Otelo não fale, porque todos nós devemos a Otelo a possibilidade de dizermos aquilo que nos vem à alma, até mesmo dizer que, "assim", o 25 de abril não terá valido a pena, que seria bom se a democracia pudesse contar com alguém com a inteligência de Salazar - como se houvesse figuras de neutral sapiência que, qual Fouché, serviriam todos os regimes.

Conheço mal Otelo Saraiva de Carvalho mas, diga-se desde já, tenho, face a ele, toda a gratidão do mundo. Por tudo o que fez por nós, há 37 anos. Algumas pessoas não perceberão isso. Problema delas, como dizem os brasileiros.

Um dia, em inícios de 1983, em Luanda, cruzei-me com Otelo num hotel. Não nos víamos desde o "verão quente", dos corredores do MFA, de idas ao Alto do Duque. Convidei-o a vir almoçar no dia seguinte a minha casa, com o João Sobral Costa, um amigo comum, um gigante de bondade que, como capitão da Força Aérea, havia feito parte do grupo ocupante do Rádio Clube Português, na noite de 25 de abril, e que trabalhava então em Angola. Sugeri que se nos juntasse o Arlindo Ferreira, outro capitão de abril, que estava em Luanda para outras "guerras" (e que já faleceu). Por aquelas "makas" (uso uma expressão angolana) em que a família militar (e a de abril ainda mais) é useira e vezeira, não se reuniu consenso para o Arlindo se nos juntar.

No dia do almoço, vim à porta de casa buscar Otelo, que ia acompanhado da mulher e de uma figura que não vem para o caso (mas que talvez pudesse explicar muita coisa). A minha residência era no "compound" da Embaixada, onde também funcionavam os serviços e o consulado-geral, na então rua Karl Marx, que antes fora chamada de Vasco da Gama e que, hoje em dia, é avenida de Portugal (evolução toponímica que daria para um mestrado...). 

A grande maioria dos funcionários da nossa missão diplomática em Luanda era constituída por antigos quadros da administração colonial, que tinham visto o percurso da sua vida perturbado pelo 25 de abril e pela independência do país que, em geral, sofriam bem mais do que celebravam. Não era, assim, legítimo pedir-lhes que entoassem loas à chegada do estratega da Pontinha. Um deles, boquiaberto, perguntou-me: "É o...?", sem ousar dizer o nome. Era, confirmei-lhe, e, nesse segundo, devo ter caído uns furos na sua escala de consideração, bem como na de outros a quem terá contado a inconveniente frequentação social do jovem diplomata que eu então era.

Esse almoço com Otelo foi uma ocasião que recordo como bastante simpática. Ele e o João Sobral Costa, que haviam sido vedetas de um filme onde eu só fiz umas "pontas" como figurante, conflituaram versões sobre o "documento do COPCON" (demoraria muito explicar aqui o que isso foi) e outras cenas desses tempos movimentados. Recordo-me de lhes ter lido extratos de um livro que Otelo não conhecia, escrito por um certo militar, onde se criticava o seu "silêncio" durante a célebre "assembleia selvagem" do MFA, em 11 de março de 1975. Rimo-nos todos, porque, como eu era ali o único que podia atestar, Otelo, de facto, não tinha então falado porque... não havia estado presente nessa tão badalada reunião!

Otelo chegara a Luanda vindo de Maputo. Iria partir dali para a Líbia. Alguma coisa importante, da sua vida e da sua história pessoal futura, iria ter a ver com essa viagem.

Otelo Saraiva de Carvalho é uma figura reconhecidamente controversa. Será. Porém, para mim, será sempre muito mais do que isso. Ponto.

Em tempo: Otelo Saraiva de Carvalho acaba de publicar "O dia inicial", um livro que conta, hora a hora, a sua leitura do 25 de abril. Li-o rapidamente mas, com franqueza, não me pareceu muito interessante. Além disso, as pequenas notas pessoais inseridas no final são de um impressionismo demasiado ligeiro. O seu velho "Alvorada em Abril" continua a ser muito mais curioso.  

quarta-feira, março 16, 2011

Joaquim Vital e as colónias portuguesas

Foi uma mera coincidência.  Mas, às vezes, as coincidências têm o seu significado.

Ontem, foi o dia em que se registou a passagem de meio século sobre o feroz ataque da UPA (União dos Povos de Angola), que, no norte de Angola, vitimou centenas de colonos portugueses e de cidadão angolanos, naquela que foi a primeira grande manifestação de revolta contra a presença colonial portuguesa em Angola - depois dos acontecimentos da Baixa do Cassange e do "4 de Fevereiro", em Luanda, todos ocorridos no início desse ano histórico de 1961. A partir de então, nada iria ser igual nas colónias portuguesas, desde o Estado da Índia (que seria invadido pela então União Indiana, no final do ano), até à independência completa de Timor-Leste, apenas reconhecida pela ONU em 2002, passando pelo reconhecimento português das independências de Cabo Verde, Guiné-Bissau (que a comunidade internacional já consagrara em 1973), S. Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique, ao longo de 1975.

Ontem, também, teve lugar na Embaixada de Portugal em Paris um cerimónia durante a qual o Estado português atribuiu ao intelectual e editor Joaquim Vital a comenda da Ordem do Infante Dom Henrique. Em nome do Presidente da República, que aprovou esta distinção proposta pelo governo, sob minha sugestão, a viúva e os filhos de Joaqum Vital receberam esta distinção. que lhe era dirigida, a título póstumo, numa cerimónia privada. Foi uma condecoração dada a alguém que saíu de Portugal para não participar nessa mesma guerra colonial, como gesto ostensivo de recusa da política errada de um regime ditatorial que abafava o país.

Portugal viverá com esta dualidade eterna: com a dignidade da revolta de quantos o seu regime oprimia, bem como com a dignidade dos militares portugueses que, sob a nossa bandeira, procuraram contrariar essa vontade, sob ordens do regime de então. Esta dualidade pode parecer quase esquizofrénica, mas é a sina de um país que tem muita história e que tem sabido vivê-la no caldeirão das contradições que ela encerra. 

Ontem, ainda, a viúva de Joaquim Vital, nas simpáticas palavras com que respondeu às minhas, lembrou ser quase irónico que Joaquim Vital tivesse preparado, a meu pedido, um "curriculum vitae", para instruir a proposta de condecoração, precisamente poucos dias antes da sua súbita morte, em Maio de 2010, numa visita a Lisboa.

sexta-feira, fevereiro 04, 2011

Guerra colonial

Faz hoje 50 anos, iniciou-se em Angola a revolta contra a administração portuguesa, tema que, no ano passado. nesta mesma data, aqui abordei. Iniciava-se a nossa primeira guerra colonial.

Um amigo chamou, há poucos dias, a minha atenção para o facto de eu utilizar, com regularidade, a expressão guerra colonial, entendendo-a, aparentemente, como algo agressiva face a certos setores nacionais. Perguntou-me por que não falava em "guerra do ultramar" ou "guerra de África".

No léxico público português, o conceito de "guerra do ultramar" está ligado à ficção de que os territórios africanos que estiveram sob administração portuguesa, até 1974, eram "províncias ultramarinas", escondendo desta forma a realidade atrás das palavras. O facto de estarem "para além do mar", conceito de natureza geográfica, não retira a dimensão colonial à realidade que se pretende qualificar. Curiosamente, parece esquecer-se que o termo "colónias" (e até o de "império colonial") foi utilizado até muito tarde, pelo Estado Novo. Só quando os ventos descolonizadores se tornaram ameaçadores no plano internacional é que apareceu oficializado o conceito de "províncias ultramarinas" - no nunca convincente mito do "Portugal do Minho a Timor". Mais tarde, e como alguns se lembrarão, Marcelo Caetano viria mesmo a crismar com o equívoco nome de "Estados" os territórios de Angola e Moçambique, a exemplo do que fora usado para o "Estado da Índia".

As "possessões" (outro termo que, significativamente, se usava no salazarismo, paralelamente ao conceito de "ultramar") africanas e asiáticas eram simples colónias e, como tal, foram sempre consideradas pela comunidade internacional - a qual, valha a verdade, nunca foi "inimiga" de Portugal mas sim da ditadura que sobrevivia no nosso país. Contrariamente aos tempos do Estado Novo, em que quem falasse de "colónias" tinha a certeza de vir a sofrer represálias, hoje é perfeitamente legítimo, na democracia que a Revolução do 25 de abril nos trouxe, referir o "ultramar" ou as "províncias ultramarinas".

É óbvio que esta questão se prende com o problema da "guerra". Para alguns, o conceito de "guerra do ultramar" é mais confortável e a ideia de guerra colonial pode ser lida como potencialmente deslegitimadora da luta dos nossos soldados, entre 1961 e 1974.

Nada de mais errado. As Forças Armadas portuguesas conduziram, nesses 13 anos, um esforço de preservação da soberania portuguesa sobre as suas colónias, conforme lhe era ordenado pelo regime então vigente. Fizeram-no com o profissionalismo e o sentido patriótico a que sempre nos habituaram, arcando com sacrifícios em termos humanos que o país deve reconhecer e prestigiar. Os militares portugueses que intervieram nas guerras que Portugal disputou nessa África - todos os combatentes, mas, em especial, os feridos e os mortos - não são de "esquerda" nem de "direita", sendo patético ver a sua dignidade, muitas vezes, refém de aproveitamentos sectários, como se vê em algumas romagens de saudade. Esse militares lutaram por Portugal, na perspetiva do país que o regime impunha, defendendo o que lhes apontavam como sendo a nossa bandeira. E, contrariamente a certas vozes que por vezes emergem, tão patriotas eram os soldados que lutavam contra os movimentos independentistas das colónias (chamados então de "terroristas") como quantos se opunham, no interior ou exilados no estrangeiro, ao regime ditatorial que vigorava no país. Desigualizá-los em patriotismo é assumir a ideologia da ditadura. Hoje isso não é proibido, mas não deixa de ser significativo.

Convém também lembrar que foram essas mesmas Forças Armadas - as quais, com o seu esforço, tinham dado ao regime muito tempo para uma resolução política da questão colonial - que derrubaram o regime ditatorial e instauraram o sistema democrático. Foi a necessidade dessa rutura, que teria sido evitável se tivesse havido uma negociação tempestiva, que conduziu a uma independência atribulada das colónias, com dramas humanos - para os portugueses e para os povos colonizados - que eram perfeitamente escusados.

Por tudo isso, porque as coisas são o que são, continuarei a usar, aqui e como noutros contextos, a expressão guerra colonial. Outros podem optar por uma "terceira via", para fugir ao dilema: falar das "guerras de África" ou das "campanhas de África". Eu continuarei a chamar as coisas pelos seus nomes.

domingo, setembro 19, 2010

27 de maio

Há mais de um ano (como o tempo passa!) falei aqui do 27 de maio de 1977, uma data trágica para a história de Angola, que consagrou o início de uma espécie de "guerra civil" no seio do MPLA, a qual conduziu a milhares de mortos e a um traumatismo que ainda hoje atravessa muitos setores da sociedade angolana.

A história recente de Angola, queiramos ou não, constitui também um capítulo da nossa própria história. Não se pode compreender o 25 de Abril, e tudo quanto lhe sucedeu, sem se ter em conta o efeito recíproco dos fenómenos ocorridos nos territórios que, então, abandonavam a tutela da colonialismo português. Isso é válido para o 27 de maio, como o é para a relação entre o MPLA e a UNITA.

Por uma mera coincidência, cheguei a Angola, colocado na nossa Embaixada, no dia 27 de maio de 1982, isto é, precisamente cinco anos depois do 27 de Maio de 1977. Sabia pouco do que se tinha passado em 1977, isto é, tinha apenas os impactos mediáticos do acontecimento, em muitos casos sob a luz distorsora das ideologias. Recordo ter-me sempre defrontado com um imenso muro de silêncio quanto inquiria sobre os eventos ocorridos meia década antes. Poucos queriam falar disso e os que tal ousavam faziam-no num registo de contenção que muito me impressionou. Ainda hoje, com alguns amigos e conhecidos da realidade angolana, continuo a ter uma estranha dificuldade em abordar o tema, que parece ter-se convertido em tabu na memória coletiva.

Há dias, vi e comprei em Portugal um livro publicado sobre a figura de Sita Valles, uma pessoa da qual a maioria dos leitores deste blogue nunca terá ouvido falar. Sita Valles foi uma militante política, ligada à UEC (União dos Estudantes Comunistas), a organização estudantil do PCP (Partido Comunista Português). Nascida em Angola, filha de pais indianos, foi estudar medicina para Portugal, tendo-se tornado numa figura importante do movimento associativo universitário de então. A sua fase de maior atividade coincide com um período em que eu próprio estava já a ter uma menor ação nesse movimento, pelo que tenho dela apenas uma memória pessoal muito remota.

Após o 25 de abril, Sita Valles decidiu regressar à sua terra natal, para participar na vida do novo país independente. A sua ação no seio do MPLA foi marcada por um forte radicalismo, que a tornou, desde cedo, numa personalidade bastante controversa. Terá tido uma particular responsabilidade na formação de uma tendência política que era protagonizada na figura de Nito Alves, um prestigiado guerrilheiro em torno do qual se criou um movimento que, em 27 de maio de 1977, tentou forçar, de forma violenta, uma mudança no poder político angolano, pondo em causa ou pretendendo condicionar o presidente Agostinho Neto. Sita Vales foi então presa e, mais tarde, terá sido executada, como vários outros milhares de pessoas, alegadamente implicados naquele golpe político-militar. De notar que houve também alguns cidadãos portugueses que apareceram envolvidos naqueles acontecimentos.

O livro agora escrito por Leonor Figueiredo traça-nos um retrato inédito de Sita Valles, das suas relações familiares e afetivas, bem como da sua variada, mas sempre muito empenhada, atividade política. Fala-nos também um pouco do 27 de maio, acrescentando alguns dados mais à escassa bibliografia existente sobre essa data, a qual permanece muito pouco estudada e sobre a qual continua a imperar um grande desconhecimento público. O livro, em si mesmo e como biografia humana e política, tem o valor que tem, mas tem, essencialmente, o grande mérito de abrir mais uma porta para um dia se poder vir a saber, em detalhe, o que se terá, de facto, passado em Angola, nesse período. Talvez então possamos conhecer algumas coisas mais sobre o 27 de maio: as posições do Partido Comunista Português, a real atitude da União Soviética perante a aproximação e o desenrolar dos eventos, o verdadeiro papel desempenhado pelos diplomatas e pelas forças armadas cubanas, etc. Tudo isso é importante para a história de Angola, mas é igualmente vital para se perceber melhor um tempo decisivo no processo de relação política de Portugal com esse país. 

terça-feira, agosto 24, 2010

Fados

"Ela terá nascido cá?", perguntou aquele nosso embaixador, de visita de trabalho a Luanda, nos anos 80. E apontava para a placa "Avenida Deolinda Rodrigues". "Não era má fadista, mas daí a ter uma avenida com o nome dela...", continuou ele, bem perplexo.

Do banco de trás do meu Golf, saltou uma gargalhada sonora do funcionário do Ministério das Relações Exteriores, um querido amigo angolano. Imagino que tenha lançado também o seu imenso sorriso branco, reluzente na cara muito negra. 

Deolinda Rodrigues, homónima de uma fadista lisboeta, foi uma guerrilheira e heroína do MPLA, presa e assassinada pela UPA/FNLA, em 1968. Na suposta data da sua morte é comemorado o dia da mulher angolana.

O meu colega, hoje já reformado, desfez-se em desculpas. Ainda há poucos anos me perguntava se eu achava que o diplomata angolano tinha ficado muito ofendido com a sua "gaffe". Ainda um dia tenho de perguntar isso ao meu amigo angolano.

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

O "4 de Fevereiro"

Há precisamente 49 anos, um grupo de independentistas angolanos foi responsável, em Luanda, pelo chamado "4 de Fevereiro", a primeira ação armada que foi organizada contra a presença portuguesa em Angola. Com ataques de surpresa a prisões, forças policiais e outros pontos estratégicos da capital angolana, que causaram vítimas mortais, as escassas centenas de ativistas do "4 de Fevereiro" instabilizaram por horas Luanda, sendo subsequentemente alvo de forte repressão - militar, policial e civil -, a qual atingiu também diversos setores da população autóctone residente na cidade.

A data de 4 de Fevereiro de 1961 constituiu, assim, o início das revoltas coloniais contra Portugal, as quais, a partir de 1964, se iriam estender a Moçambique e à Guiné. Entretanto, no final desse ano de 1961, a União Indiana iria invadir o Estado da Índia, pondo um ponto final à presença da administração portuguesa naquele território.

O movimento de "4 de Fevereiro" foi, em si mesmo, um acontecimento bastante complexo, muito mais do que algumas versões simplistas que sobre ele foram mais tarde conhecidas e divulgadas. A sua génese política é também importante para se entenderem as raízes do que foram as profundas clivagens entre os grupos político-militares angolanos, que, logo após a independência do país em 1975, se saldou numa mortífera guerra civil, que, com diferentes formatos, se prolongaria até 2001.

Quando vivi em Angola, nos anos 80, tive o ensejo de conhecer e falar com algumas das figuras envolvidas no "4 de Fevereiro". Pude então saber algo mais sobre esse movimento e, em especial, informar-me com maior detalhe sobre a importância que nele teve uma figura religiosa, o Cónego Manuel das Neves, pároco envolvido na mobilização e no apoio logístico da revolta, que viria a ser preso e expulso para Portugal. Aí ficou com residência fixa, tendo morrido em Soutelo, em 1966. Muito pouco se falou sempre sobre esta figura do nacionalismo angolano e talvez valesse a pena refletir por que razão isso aconteceu.

O "4 de Fevereiro" seria apenas o início, simbólico e trágico, da revolta angolana. Em 15 de Março de 1961, membros da  UPA (União dos Povos de Angola), que mais tarde se viria a transformar em FNLA, estiveram na origem de sangrentos e chocantes ataques a populações civis em zonas rurais no norte de Angola.

O efeito conjugado daqueles dois acontecimentos teve uma forte repercussão em Portugal, que iniciou então o envio de forças militares que, por 13 anos, conseguiram assegurar a permanência da soberania portuguesa no território. 

As ondas de choque político que esses acontecimentos provocaram, ligadas a outros eventos políticos que então se registaram na sociedade política portuguesa, viriam a contribuir para transformar esse ano de 1961 num dos mais difíceis e movimentados anos da história do Estado Novo. Disso falaremos um destes dias.

terça-feira, novembro 17, 2009

O abraço

Achei que tinha mesmo de ajudá-lo. Aquele meu colega de liceu, que já não via há anos, sabendo que eu estava colocado na Embaixada em Luanda, nesses idos de 80, procurou-me, nas férias de Natal, para me pedir para tentar encontrar o seu pai, que há algumas décadas migrara para Angola, antes da independência do país, e que, há cerca de cinco anos, deixara de dar notícias. A sua mãe tinha-se desligado afectivamente do antigo marido e não queria saber dele. Mas ele, como filho, não. A última localidade onde vivera era a milhares de quilómetros da capital angolana, só acessível por estrada, a partir de uma outra cidade, esta com ligação aérea a Luanda. Teria morrido? Estaria em dificuldades? Desde essas férias de Natal, impus a mim mesmo a obrigação de procurar o paradeiro do sr. Matias, de Vila Real.

Convém lembrar que esse era um tempo de guerra civil em Angola, com muitas localidades isoladas e frequentemente sob tensão militar. A zona onde o Sr. Matias vivia (vivia?) situava-se em áreas onde os conflitos eram mais intensos. Mas sabia-se que, em Angola, havia sempre portugueses em todo o lado, por mais inóspitas que fossem as paragens.

Chegado a Luanda, fui ao Consulado e lá estava a ficha do sr. Orlando Matias. Tinha nascido há 74 anos. O último acto consular praticado datava de há já quase seis anos. Falei com os funcionários e pedi-lhes que, se e quando aparecesse alguém da cidade onde se supunha que o sr. Matias vivia, lhe pedissem para ir falar comigo, dois andares acima, naquele imenso e desagradável prédio onde eu trabalhava e vivia, na Rua Karl Marx, antiga Rua Vasco da Gama.

Semanas depois, apareceu alguém da referida localidade. Chamei-o e confirmei - boa notícia! - que o sr. Matias estava de boa saúde e ainda trabalhava. Quando referi à pessoa a razão pela qual queria encontrar o sr. Matias, pedindo-lhe para passar a minha mensagem, retorquiu-me: "Está bem, mas, por ora, não diga ainda nada à família dele. Vou tentar que ele fale consigo". Estranhei um pouco, mas as vidas africanas têm razões que a lógica desconhece. E respeitei o que o homem me pediu.

Os meses passaram, mesmo muitos. Até que um dia, da portaria, me chega o recado que um tal Orlando Matias estava ali, para me ver. Rejubilei. Mandei-o subir e recebi um homem tisnado, pequeno, magro mas com ar saudável, olho vivo e cara seca, sem sorrisos. Expliquei-lhe o encontro tido com o filho, meu antigo colega, tentei aligeirar a conversa, que sentia não fluir, num esforço para suscitar memórias comuns de Vila Real. Mas rapidamente comecei a perceber que, para ele, o passado era mesmo o passado.

A certo passo, disse-me: "Sabe, senhor doutor, se calhar é melhor não dizer ao meu filho que me encontrou". Fiquei perplexo e, de certo modo, desiludido. Depois de meses de espera, quando eu pensava ter resolvido o mistério e me preparava para dar a boa nova ao meu antigo colega, tudo se desvanecia. Porquê?

"Eu não vou regressar nunca a Vila Real. A minha vida é em Angola. Esta agora é a minha terra. Tenho aqui mulher e já cinco filhos, tenho um negócio que vai bem, mesmo com a guerra. A mulher e o filho que deixei em Portugal já não esperam ver-me, se calhar acham que eu morri. É melhor assim. Nem eu tenho dinheiro para lhes mandar, nem era capaz de abandonar a família que fiz por aqui. Diga ao meu filho que não me encontrou, faça-me esse favor".

Num segundo, percebi o drama do homem. Dei-lhe todos os meus contactos para o caso de precisar da minha ajuda e levei-o ao elevador. À despedida, não resistiu e, de dentro daquela secura que os trópicos e as dificuldades da vida haviam incutido no seu carácter trasmontano, disse uma coisa bonita: "Quando encontrar o meu filho, dê-lhe um abraço forte, por mim. Mas não lhe diga nada, está bem?". Nunca disse.

quarta-feira, setembro 02, 2009

Angola

Não posso deixar de recomendar, no "Expresso" do passado sábado, que só hoje me chegou (Paris é longe...), o emocionante texto que Francisca Van Dunen dedica ao seu irmão e à sua cunhada, José Van Dunen e Sita Valles, mortos nessa maré de tragédia que foram os acontecimentos de 27 de Maio de 1977, em Angola.

Cheguei a Luanda em Maio de 1982, precisamente 5 anos depois desse tempo terrível e ouvi às vezes, sempre num sussurro de prudência, relatos esparsos desses dias em que, para sempre, se quebrou o encanto em torno de um certo sonho colectivo. Durante todos os anos seguintes que passei em Angola, raramente encontrei alguém disposto a abrir-se comigo sobre esses momentos, qualquer que houvesse sido o lado da barricada em que se tivesse então situado. Na altura, eu havia ficado com a sensação de que os angolanos faziam um esforço deliberado para provocar o esquecimento sobre esse período, como se as feridas acabassem por sarar melhor se se não olhasse para elas. Não era verdade. Muito do que, entretanto, se publicou sobre o 27 de Maio provou que nada substitui o trabalho em torno da verdade, qualquer que seja o preço que isso possa ainda ter e por muito que essa mesma verdade possa doer a alguns.

No seu texto, a Francisca, pessoa por quem tenho uma grande admiração e que é hoje um expoente de dignidade na turbulenta Justiça portuguesa, confronta a sua trágica memória por via da ternura e fá-lo com uma serenidade por onde perpassa bem todo o seu amor a uma certa Angola. Leiam o texto com atenção. Todos temos muito a aprender com ele.

quarta-feira, julho 22, 2009

Mercedes

Numa noite, nos idos de 80, o embaixador português em Angola saiu de um jantar em minha casa, no "compound" da Embaixada - onde eram os escritórios e muitos de nós então vivíamos -, e arrancou ao volante para a sua residência, no bairro de Miramar. Tentava chegar antes da meia-noite, hora do "recolher obrigatório", que quase sempre implicava a possibilidade de encontrar patrulhas armadas, de humores variáveis e imprevisíveis.

Poucos metros corridos na Rua Karl Marx (antigamente, era Vasco da Gama...), enveredou por um caminho mais curto, que passava sob um prédio ocupado por "cooperantes cubanos". Ao aproximar-se do túnel do prédio, depara com umas pessoas que rodeavam uma senhora sentada no chão, aparentemente em dificuldades, que faziam gestos para o carro parar.

Luanda era então uma cidade sob tensão de guerra, mas as condições de segurança na cidade, em especial nessa zona, eram ainda razoáveis. Além disso, o embaixador era homem confiante e muito humano, pelo que não hesitou um segundo e parou. Tratava-se de uma grávida em aflições de parto e os circunstantes pretendiam levá-la para a maternidade de Luanda, o Hospital Josina Machel (antigo Maria Pia). As portas do carro abriram-se de imediato, para deixar entrar a senhora. Mas, fosse pelo esforço, fosse pela pressão do tempo, já não deu tempo e a criança acabou por nascer dentro do carro do embaixador de Portugal.

O nome dado à criança - vá-se lá saber porquê... - foi Maria Mercedes!

sexta-feira, maio 15, 2009

Angola

O embaixador do Congo em Paris, Henri Lopes, contou-me, há dias, uma história curiosa, passada em 1974.

Na capital do Congo, Brazaville, estava situada aquela que era a principal representação externa do MPLA no exterior. Nesse tempo, o movimento defrontava-se com uma cisão chamada Revolta Activa, então chefiada por Mário Pinto de Andrade. A Organização de Unidade Africana (OUA) procurava encontrar uma solução para aquela fractura política e Henri Lopes, que era então primeiro-ministro do Congo, havia sido encarregado de tentar uma reconciliação. Em algumas conversas, Neto dera sinais de poder aceder a essa ideia, pelo que foi marcada uma reunião no gabinete do primeiro-ministro congolês.

Assim, numa manhã, Neto e Lopes falavam do tema, com o presidente do MPLA a dar indicações claras de que, nos termos de algumas condições, um compromisso era possível. Num determinado momento, porém, chega a notícia de que uma revolta tinha tido lugar em Portugal. Era dia 25 de Abril.

Ao espanto de Agostinho Neto sucedeu-se, de imediato, a sua decisão de pôr fim a qualquer mediação ou entendimento. O MPLA e a Revolta Activa acabaram por agravar as suas tensões, que chegou a momentos de alguma violência, mesmo em Brazaville. Os membros da Revolta Activa não viriam a ter qualquer papel no início da independência angolana.

É curioso como, aqui por Paris, se encontram histórias esparsas que se ligam à nossa aventura africana.

Fora da História

Seria melhor um governo constituído por alguns nomes que foram aventados nos últimos dias mas que, afinal, acabaram por não integrar as esco...