segunda-feira, abril 11, 2016

Old habits...



Os anglo-saxónicos usam a expressão "old habits die hard" para definirem a dificuldade que temos em nos libertarmos dos velhos hábitos, das rotinas da vida, privada ou profissional.

Hoje, fui almoçar à residência de um embaixador europeu em Lisboa, a seu convite. Foi uma conversa longa, sem agenda visível, em que ambos falámos um pouco de tudo: da política portuguesa, do seu país, das vicissitudes da Europa e de vários outros temas. Ele é um homem preparado, culto e atento. Deu-me a sua visão avalizada sobre vários assuntos, as suas impressões sobre pessoas, a sua leitura sobre questões em curso na Europa e o modo como o seu país as encara. Foram bem mais de duas horas de agradável e proveitosa troca de pontos de vista.

A embaixada em causa situa-se a cinco minutos do local onde vivo. Quando regressei a casa, peguei nos jornais da manhã, que ainda não tinha lido, e fui sentar-me num sofá. À medida que ia passando pelas suas páginas, invadiu-me uma sensação estranha. Sem perceber bem o que se passava, criou-se dentro de mim a perceção de que havia qualquer coisa de errado, de que, na realidade, eu deveria estar a fazer outra coisa e não aquela lúdica e leve leitura. Mas não percebi logo o que era. Passaram uns bons vinte minutos antes que eu tomasse consciência do que, na realidade, ocorria comigo.

Só então entendi. O que é que faltava? O "telegrama"! Como diplomata, habituei-me, imediatamente após um encontro sobre temas políticos numa embaixada, a ir de imediato tomar notas e relatar a Lisboa a minha conversa, as posições ouvidas, aquilo que me parecesse de interesse para Portugal. Ora eu tinha ouvido nessa conversa coisas interessantes, leituras fundamentadas sobre a posição daquele país sobre temas que nos respeitam. Tivesse esta conversa tido lugar num posto onde eu estivesse como embaixador e, com toda a certeza, por uns bons três quartos de hora, eu ficaria "agarrado" ao computador a fazer aquilo que, na ironia da carreira, se chama "um bem elaborado telegrama".

Mas não, nos dias de hoje, estou livre e bem livre dessas tarefas, até porque, nem por uma hora da minha vida, tive alguma vez a mais leve nostalgia desses meus antigos encargos diplomáticos. E, hoje, no momento em que realizei isso mesmo, entrei num súbito estado de bem-estar e "relief".

Penso que os meus antigos colegas da carreira diplomática, portugueses ou estrangeiros, entendem bem esta sensação, esta deformação profissional. Porque, ao mesmo tempo, acaba por ser um imenso prazer constatar que já não temos uma determinada obrigação, que nos livrámos dela. Como diria Pessoa: "Ai que prazer/não cumprir um dever/ter um livro para ler/ e não o fazer". Não se trata de não fazer nada: trata-se de fazer outras coisas, que nos podem conduzir a outros prazeres alternativos. 

O meu colega Luís Filipe Castro Mendes, que também é colega de Pessoa na escrita poética, terá, a partir de hoje, uma sensação similar: ir fazer as coisas novas que lhe apraz fazer.

A Caixa em festa!


A Caixa Geral de Depósitos fez ontem 140 anos. Uma bela idade. A Caixa faz parte da minha vida. O meu pai foi funcionário da Caixa Geral de Depósitos por 47 anos, 25 dos quais como gerente, em Caminha, Monção e Vila Real. Vivi parte da minha juventude na residência que lhe era atribuída. Foi pelo exemplo dele, como funcionário da Caixa, que aprendi a respeitar e a reverar o serviço do Estado.

"Nisto não se mexe, isto é do Estado!". Tenho esta frase no ouvido desde sempre. Eu devia ter 7 ou 8 anos e o meu pai havia-me levado, uma tarde, a assistir à abertura de uns caixotes de madeira que, uma vez por ano, chegavam, "de Lisboa", com o material de papelaria, para ser utilizado pelos funcionários, nos 12 meses seguintes. Eram resmas e blocos de papel, lápis, cartolina, borrachas, elásticos e tinta para canetas. Para quem, como eu, vive, desde que se conhece como gente, fascinado pela "stationery", a visão desse material deve ter-me criado imensa água na boca. Mas o meu pai, nas coisas do Estado, era inflexível: nunca tive, pela sua mão, um lápis ou uma borracha "do Estado" e, recordo-me muito bem que, quando passei a poder usar uma velha máquina de escrever da família, o meu pai trazia para casa fitas já usadas, consideradas demasiado gastas para o serviço...

Foi assim que, em minha casa, aprendi, para vida, o que era o Estado. Dessa forma me foi ensinado o que era ser servidor público, como o meu avô já o fora, este mostrando-me, pelo exemplo constante de vida, que servir o Estado era sinónimo de servir o país. Com eles aprendi a recusar uma dualidade pessoal com o Estado, porque, como sempre ouvi, "o Estado somos todos nós".

Durante muitas décadas, a Caixa foi o banco popular de Portugal. Era à Caixa, porque a Caixa era do Estado, que as pessoas mais simples confiavam os seus haveres. A Caixa tinha "cadernetas" escritas à mão, onde era inscritos os juros e registados os saldos. Os depositantes compraziam-se em passar pelo balcão da Caixa, para fazer esse acrescento regular, que lhes assegurava "quanto tinham na Caixa".

O meu pai recordava, às vezes, uma pequena história. Um dia, um funcionário veio avisá-lo de que um cliente, depois de ter pedido para "atualizar a caderneta", informara que queria levantar todo o dinheiro que tinha na sua conta, em espécie. Tratava-se de um montante bastante elevado e, até por razões de segurança, era um pouco estranho que o cliente quisesse transportar o dinheiro dessa forma. Estaria o homem insatisfeito com o serviço prestado pela Caixa?

O meu pai mandou entrar o cliente para o seu gabinete. Era um homem simples, residente numa aldeia próxima de Vila Real, idêntico a uma imensidão de outros clientes oriundos das áreas rurais, que constituiam uma grande massa dos depositantes na Caixa. Tinha uma atitude de alguma reserva, talvez mesmo desconfiança, típica de pessoa de aldeia confrontada com a realidade, menos transparente, da cidade. Perante a estranheza manifestada, pela inusitada (e até arriscada) operação que ele pretendia executar, o homem respondeu: "O dinheiro é ou não é meu? Posso ou não posso fazer com ele o que me apetecer? Quero levantá-lo todo e já!". Perante esta inabalável determinação, o meu pai mandou preparar grandes envelopes com as notas, que foram entregues ao cliente. Após receber o dinheiro, o homem perdeu largos minutos a contar todas as notas. No final, disse: "Agora, quero depositar isto tudo outra vez. Foi só para saber se o dinheiro ainda era meu!". E era, claro.

Em 1971, no meio de algumas atribulações académicas que suspenderam o meu percurso universitário, e como forma de evitar que os meus pais continuassem com encargos derivados das trapalhadas universitárias do filho, decidi empregar-me. E fiz concurso para a Caixa, que admitia algumas centenas de novos funcionários.

Nesse concurso público de entrada, algum domínio da escrita terá compensado falhas na área da contabilidade. Antes de ser admitido, li e assinei, sob o olhar atento de um antigo ministro de Salazar, uma declaração onde atestava o meu "ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas". No meu bolso, recordo-me bem, levava um livro de Engels, das Éditions Sociales. Só avisei o meu pai, de quem passei a ser "colega", depois do resultado das provas ser tornado público. Tenho, aliás, a ideia de ter ficado lá para o meio da tabela... 

A Caixa Geral de Depósitos tinha então a sua sede no majestoso edifício do Calhariz (na imagem), onde eu passei a trabalhar no "serviço de títulos".

As regras eram à antiga. Eu vinha dos Olivais, de autocarro, passava para o metro, subia o elevador da Glória e atravessava o Bairro Alto. Entrava-se às 9.30. Às 9.35, o senhor Marques, chefe da secção, recolhia o livro de ponto. Para o assinar depois, era necessário justificar o atraso e penitenciar-se pelo mesmo. A hora de saída, para almoço e à tarde, era, também, sagrada. Cinco minutos antes do encerramento do expediente, o Serra, na secretária ao meu lado, sacava invariavelmente de um pano de feltro para limpar os sapatos que, logo depois, apontavam para a porta, para onde disparava quando o ponteiro do relógio tremia nas 17.30.  Ah! e trabalhava-se nas manhãs de sábado!

Ao almoço, espalhavamo-nos pelas tascas da zona, em grupos variáveis. Se o sol aparecia, escostavamo-nos, antes do regresso ao trabalho, pelos passeios em frente, apreciando o "pequename" que passava. Eu aprendia a vida com quem a vivia com dificuldades bem maiores do que as do episódico colega que eu era, futuro licenciado, olhado como figura passageira pelos colegas, entre os quais fiz - diga-se - sólidos amigos. 

O meu curso universitário prosseguia entretanto, como "estudante voluntário". No primeiro ano, para fazer as "frequências", tive de pedir autorização excecional para as escassas ausências. Mais tarde, foi necessário utilizar os dias de férias, para poder  estar presente a esses exames. Dispensa para aulas ou exames era, então, uma miragem.

O trabalho era sereno, burocrático, sem surpresas. Nem muito exigente, nem deixando tempo para "calaceirices". Essas ficavam para colegas antigos, "primeiros oficiais", com mais "ronha", alguns eternamente parados nas suas secretárias ou saltitando em conversas, sempre sob o olhar crítico do senhor Marques, que prescutava as várias áreas do imenso "open space" por onde nos distribuíamos. 

Os contínuos, o Rui e o Abrantes, forneciam-nos, regularmente, uma caneta Bic. Quando a respetiva carga acabava, trocavamo-la por outra igual, devolvendo a velha, claro está! Nas horas vagas, tentavam impingir-nos relógios Cauny, com preços "de favor". 

Às segundas-feiras, dominava o futebol. Não se falava muito de política, salvo com  o Aldeia e com o Murta, amigos com quem essa maior intimidade entretanto se criara. Dois ou três sabiam que a minha eleição não tinha sido "homologada", por duas vezes, como dirigente associativo universitário, e que isso me tinha criado "problemas", sobre os quais nunca elaborei muito Com eles, mantinha alguma cumplicidade, pela comunhão de que "isto" tinha de mudar, mais cedo ou mais tarde. As vigorosas manifestações do sindicato dos bancários, do qual não podíamos ser associados por sermos funcionários públicos, eram comentadas com todo o cuidado, porque as paredes tinham ouvidos. As paredes e alguns "fachos" que nos rondavam, que pressentíamos poderem ser perigosos.

Pela véspera de Natal, o chefe de repartição, o senhor Trancoso, que durante todo o ano assomava uma meia dúzia de vezes à nossa sala, quase sem nos olhar, colocava-se junto à saída para um excecional  aperto de mão anual de favor. E, de 26 até 31 de Dezembro, lá estávamos nós, em horas extraordinárias (não pagas aos novatos), para tentar garantir os "acertos" para as contas do ano ficarem exatas.

Era assim a vida de um bancário público, que fui durante quatro anos. Nostalgia? Nenhuma, podem crer. 

A Caixa mudou muito. Nem sempre para melhor. Há uns anos, numa dependência da Caixa, em Vila Real, testemunhei o drama de uma pobre senhora de aldeia, a dona Celeste, confrontada com a impossibilidade de resgate do montante de um "produto" em que, há alguns anos, tinha sido convencida a empregar alguns largos milhares de euros e que, agora, se via impossibilitada de levantar, sem perder uma importante fatia do próprio capital. Assiti então, por largos e pungentes minutos, ao embaraço delicado dos funcionários, dos lamentos lancinantes da senhora, seguidos do seu desmaio, com hipótese de convocação do 112. Um espetáculo triste, penoso e indigno, que incomodou quem a ele assistiu. Que não sei mesmo como acabou, porque, logo que pude, saí, indignado.

Quem terá sido o funcionário espertalhote que vendeu à dona Celeste o "produto", em cujo "small print" estavam (espero eu!) as condicionantes limitativas das possibilidades de resgate? Aquele que o fez impingiu àquela pobre senhora, que tinha uma evidente limitação cultural para entender as peculiaridades da evolução financeira dos mercados, um "produto" em que enterrou muitos dos seus haveres. E, goste-se ou não da palavra, essa pessoa incorreu, na prática, numa verdadeira fraude. Ela e, com ela, a Caixa Geral de Depósitos, instituição onde também eu tenho as minhas economias e que, por ser propriedade do Estado, sempre tive por um banco diferente, onde tinha a certeza que os clientes nunca seriam tratados assim. Enganei-me, pelos vistos. 

Se fosse vivo, e se tivesse assistido a esta lamentável cena, o meu pai teria sentido uma imensa tristeza, idêntica à que eu próprio experimentei. Mas ele já morreu, como também já parece ter desaparecido uma parte daquela Caixa Geral de Depósitos que foi o seu orgulho, em que as pessoas mais simples deste país, por muitos anos, se habituaram a confiar.

Apesar de tudo, mas por tudo o resto, parabéns à Caixa. E uma nota interessante: gostei de ouvir o chefe do Estado, numa dependência da Caixa Geral de Depósitos, afirmar que era favorável a que a instituição permaneça pública. Eu também sou, claro.

domingo, abril 10, 2016

Luís Castro Mendes



Nós vivemos da misericórdia dos mercados.
Não fazemos falta.
O capital regula-se a si próprio e as leis
são meras consequências lógicas dessa regulação,
tão sublime que alguns veem nela o dedo de Deus.
Enganam-se.
Os mercados são simultaneamente o criador e a própria criação.
Nós é que não fazemos falta.


Luís Filipe Castro Mendes


Quando Otelo concorreu a Belém, o cartaz dizia: "Otelo - um amigo na Presidência". Eu agora digo: um grande amigo na Ajuda.

Força Luís!

sábado, abril 09, 2016

Quem me empresta um quarto de hora?

Não sei quando começou, mas é um vício já com algum tempo. Tem a ver com o prolongamento da consulta ao computador para ver os emails, ou com a dificuldade de deixar um livro ou jornal que estou a ler ou mesmo um programa de televisão. Deixo-me ficar, meço muitas vezes mal o tempo de que necessito para chegar aos locais, não conto com a imponderabilidade do trânsito ou com um telefonema de última hora, e, depois, lá vou eu aflito para chegar a tempo a alguns compromissos. Às vezes, também, é alguém que cruzo na rua, outras a dificuldade de encontrar lugar para estacionar.

Preciso de quinze minutos. Tivesse-os eu e nunca andaria afogueado, a mandar o velho SMS "estou atrasado", nunca teria de pedir desculpa por algum imponderável que me ocorra.

(E, porque assim é, vou sair já para um jantar que tenho no outro lado da cidade...)

PS - Este texto saiu simultaneamente no blogue e no Facebook. Aqui saiu "imponderábel". Lá o erro não surgiu. Coisas... 

sexta-feira, abril 08, 2016

Draghi em Belém

Mario Draghi é um funcionário europeu. Deve o lugar que ocupa, na presidência do Banco Central Europeu, à confiança do governo da Alemanha. Sem ela não teria sido nomeado em substituição do ortodoxo Trichet. Sem ela não teria continuado, depois da demissão de um diretor-geral alemão do BCE, em oposição às suas primeiras medidas. E, claro, sem a confiança de Angela Merkel não estaria hoje a praticar o "quantitative easing", que tem dado uma certa estabilidade (embora relativa) à zona euro, depois de sabiamente ter afirmado, para o ouvido dos mercados, que faria "whatever it takes" para proteger a moeda única.

Como funcionário europeu, Draghi não tem estados de alma. Conduz uma política tão bem quanto sabe, não pondo em causa a filosofia de base que também prevalece no eurogrupo, idêntica à que é maioritária no seio do Conselho Europeu. Verdade seja que Draghi, em algumas decisões, testa os limites do seu mandato. Mas fá-lo, sempre e só, porque sabe que tem a Alemanha por detrás - e a voz da Alemanha está para o euro como a voz dos EUA está para a NATO.

O presidente Rebelo de Sousa quis trazer Draghi à primeira reunião do seu renovado Conselho de Estado. A presença deste convidado, na inauguração do novo tempo, não me pareceu excessivamente feliz. Mas compreende-se. O Conselho não reúne com frequência e vive-se um tempo em que as questões financeiras são prementes, nomeadamente as que dependem das decisões das instâncias europeias, isto é, do BCE e da direção-geral da Concorrência da Comissão Europeia. Se estas duas entidades têm hoje, por muito absurdo que isso possa parecer, uma palavra determinante - e isto é um "understatement" - sobre elementos fundamentais da nossa soberania, a moeda e a banca, é mais do que natural que o presidente da República quisesse ouvir Draghi e fazer com que ele também escutasse alguma coisa. Poderia tê-lo feito em privado. Trazê-lo ao Conselho de Estado foi, contudo, uma decisão que combinou com o governo, como é sabido. É minha convicção fundada que a menor oposição deste teria inviabilizado a presença de Draghi naquele órgão.

Imagino que o novo presidente da República esteja tão chocado como a generalidade dos portugueses com o absurdo custo que o recente caso Banif trouxe aos bolsos dos portugueses. E sabe-se que Rebelo de Sousa está longe de ser um leitor acrítico da bondade dos efeitos do programa de ajustamento. Draghi veio dizer sobre a situação portuguesa o que se esperava - não trouxe a menor novidade, isto é, disse o mesmo que quem manda na Europa pensa. E para que não houvesse dúvidas (evitando ser interpretado pelas fugas portuguesas de informação e porque responde perante os "powers that be" em Berlim), publicou logo a seguir que disse, imagino que para conforto dos que por cá tão obedientes foram aos seus conselhos e algum mal-estar de quem hoje dirige o país. Mas tudo bem. O importante é que não saiu da reunião de Belém sem ter percebido que, dentre as destacadas figuras que são conselheiros do chefe do Estado português, se vive um sentimento de escândalo e de injustiça face à política europeia no tocante à nossa banca, valha isso o que valer. Ao que já se sabe, Draghi ter-se-á furtado a responder neste âmbito específico. Mas ouviu e isso foi importante.


A descolonização de Portugal


Com o tempo, tenho vindo a aprender que, afinal, quem não se descolonizou fomos nós. Trinta anos passados sobre a independência das colónias portuguesas, alguns continuem a olhar para elas como se tivéssemos um "droit de regard" sobre o que por lá se passa, com juízos condenatórios, dando-nos, por cá, ao luxo de escolher os "bons" e os "maus que por lá estão. À esquerda e à direita, porque nisto de “bitaites” sobre as antigas colónias, a lateralização ideológica é indiferente.

O caso de Angola é exemplar. Depois de 13 anos de conflito colonial, o país entrou, em 1975, numa terrível guerra civil que, com uma pausa ligeira, só terminou em 2002. Angola esteve na linha da frente das últimas décadas da Guerra Fria, com a Rússia e os EUA a decidirem, por intermédio de mortos e estropiados angolanos, as suas últimas batalhas. A paz tem, por lá, pouco mais de 14 anos. A experiência democrática local, seja ela o que for, e todos sabemos o que é, tem exatamente a mesma idade..

As estruturas do Estado, a gestão patrimonial dos bens nacionais e o modelo de governação não podem ser medidos pelos padrões de um qualquer assético país nórdico. Angola está em África, o seu "benchmark" são os países africanos, os seus vizinhos continentais. Isso é válido para a democracia, para a corrupção, para o nepotismo, para a pobreza e para as chocantes desigualdades. E até é válido para a sua comunicação social, para o nível das suas diatribes contra o ex-colono, que tanta urticária provocam em Lisboa. Só se pode comparar o comparável.

O Estado de direito em Angola é discutível? A separação de poderes existe? Eu pergunto: contribuiu Portugal, preparando quadros e estruturas, para uma transição pacífica do período colonial para a independência ou, ao invés, prolongou estupidamente um conflito com os angolanos, que se viram forçados a lutar de armas na mão? 

Quando a guerra colonial começou não havia uma única universidade nas colónias e a educação primária dos negros era da responsabilidade das missões religiosas. Alguém se lembra que o Tarrafal foi reaberto em 1961, depois de encerrado para os anti-fascistas portugueses, para lá colocar os nacionalistas angolanos, os "turras" de então? Ah! Mas não fomos nós! Foi a ditadura do Estado Novo. E não era Portugal? Do Minho a Timor? 

Angola entrou agora em grave crise. O FMI volta a ser chamado em auxílio do país. É fruto de má governação? Claro que sim. E nós? Nesse mesmo período já tivemos o FMI por cá, não duas mas três vezes! Foi fruto de quê? De boas políticas? Acho que um pouco de humildade e sentido da medida, sem pretendermos dar lições aos outros, não nos ficaria mal.

quinta-feira, abril 07, 2016

À lambada, não!


Era tempo! Lisboa andava abúlica, sem nervo, tirando as noites da Ameixoeira. 

Passos Coelho deixou de "dar luta" e já faz propostas construtivas ("passou-se"?). Cristas joga o "descubra as diferenças" com o passado, numa bancada lateral de Portas fechadas. O Bloco, cada vez mais "governista" (anote-se a crescente gravidade do tom das senhoras), o máximo a que chega em matéria de indignação é uma queixa feminista a Arroja ou uma arruada morna a Draghi. O PCP, empochadas as quotas sindicais nos transportes e com Nogueira no poder, é hoje um cordeiro do lobo que foi.

Neste mar de acalmação, João Soares, sem orçamento mas com superávite de verbo, decidiu agitar as águas, ameaçando com um par de bofetadas dois críticos que, no seu entender, haviam ido longe demais. Hoje em dia, na escrita, tudo é permitido, desde o insulto "ad hominem" às insinuações mais torpes. Se alguém se lembra de acionar a ERC ou os tribunais, aqui del rei que se está a limitar a liberdade de imprensa, porque a liberdade de insulto é sagrada, o desrespeito pela pessoas está protegido por uma bula eterna da justiça que nos saiu em rifa. Soares não foi por aí, foi por onde entendeu ir.

Estou de acordo com as bofetadas? Não estou. Não acho bem, não é chique. Mas, então, como reagir ao comentário sem maneiras? Como? À bengalada! A bengala é, desde o romantismo novecentista, o instrumento nobre de retribuir a agressão, de xingar o atrevido, de castigar o adversário que se excedeu. O Dâmaso foi baixo? Promete-se-lhe umas bangaladas em frente à Havaneza. Agora, pelo destinatário, é preciso fazer isso no Gambrinus? Que seja! E o momento certo até poderia ser o do acender da chama dos crepes Suzete! Com Jameson, até teria mais sainete, como antes se dizia.

quarta-feira, abril 06, 2016

Qual é a pressa?

É quase meia noite. A antiga ministra das Finanças continua a ser ouvida na Comissão de Inquérito sobre o caso Banif.

Com a maior sinceridade, continuo a não perceber: por que razão este tipo de trabalho não se faz nas horas normais de "expediente"? Tratando-se de um assunto do passado, cuja clarificação não ficaria prejudicada por uma semana a mais ou a menos de debate, que necessidade há de estar a criar olheiras aos deputados? É para dramatizar? É para a agenda mediática? Qual é a pressa? 

terça-feira, abril 05, 2016

O ouro da vida

No passado sábado desloquei-me à sede de um pequeno município no Douro. Tratava-se da entrega de uma medalha de ouro municipal a um amigo, que reside em Lisboa, promovida pela Câmara Municipal da terra de onde é originário. 

A distinção era justificada, entre outras razões, pela projeção que esse meu amigo dá à sua terra, através do seu prestígio e honradez profissionais. Tratou-se de uma dentre as várias personalidades locais que receberam o galardão.

Foi uma cerimónia simples, mas, curiosamente, não foi uma cerimónia "vazia", feita de retórica balofa, pelo que não foi nada penosa de acompanhar. Das palavras genuínas que alguns dos homenageados pronunciaram ficou patente o gosto pelo reconhecimento que haviam obtido mas, principalmente, pelo facto do respetivo percurso de vida, muito diverso de caso para caso, ter merecido uma consagração em face dos seus concidadãos, funcionando assim como um exemplo para estes. Estavam ali muito poucos "doutores & engenheiros"; na sua maioria era tudo gente simples, que arregaçara as mangas da vida e fora capaz de trocar as voltas ao destino menos fácil que o seu início de vida indiciava.

Deixo aqui um abraço ao meu amigo Joaquim Pinto pelo merecido galardão que lhe foi atribuído.

segunda-feira, abril 04, 2016

A guerra e a diplomacia


O mundo acordou, nas últimas horas, para o reacender de um conflito que estava um pouco esquecido: o Nagorno-Karabakh. Tratou-se de uma erupção armada que, ao momento em que escrevo, parece estar mais acalmada, mas que provocou, entretanto, algumas dezenas de mortos e um crescendo de tensão na região.

Mas de que é que estamos a falar? Trata-se de um conflito na zona do Cáucaso do Sul, num espaço geográfico delimitado pela Rússia, pela Geórgia, pela Turquia e pelo Irão, não longe do mar Cáspio. O Azerbaijão e a Arménia mantêm entre si um estado de tensão político-militar, por virtude do conflito do Nagorno-Karabakh, um território que foi objeto de uma guerra sangrenta no início dos anos 90. Esse território, cercado (e considerado seu) pelo Azerbaijão (atualmente há uma única estrada de ligação à Arménia) é hoje ocupado por populações e forças arménias, situação que os azeris não reconhecem. O Nagorno-Karabakh constitui um dos clássicos "conflitos congelados" que derivaram do fim da União Soviética.


Há 14 anos, coube-me dirigir, em Viena, a presidência portuguesa da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), sede de tratamento destas questões, razão pela qual passei a seguir estes temas, até hoje, com muita curiosidade e interesse. Em anos mais recentes, desloquei-me mesmo à Arménia e ao Azerbaijão. Mas, embora tenha estado dos dois lados da fronteira e visitado áreas tão estranhas como o enclave azeri do Nakhichevan, nunca até hoje consegui ir ao Nagorno-Karabakh. Mas ainda não desisti...


A reunião final da presidência portuguesa teve lugar no Porto, no edifício da Alfândega, em dezembro de 2002. Portugal tinha como objetivo garantir um consenso entre os 55 países da organização, porque a OSCE decide por unanimidade. 


Por ali me competiu, por muitas e longas horas, presidir ao Conselho permanente da organização, onde fui tentando concluir uma imensidão de textos, o que incluía frequentes suspensões de sessão para "confessionários", isto é, encontros individualizados com partes em conflito ou divergência, conversas feitas sob compromisso de não poderem ser reveladas às outras partes (ou tidas precisamente no pressuposto de que iria haver "leaks" e que, por essa via, se passava uma mensagem)...

A esta distância, recordo um episódio que julgo muito significativo daquilo que este particular conflito é e, muito em especial, do ambiente diplomático que o rodeia. No quadro da negociação de um determinado documento, havia uma expressão ("separatismo violento"), identificada como um dos fatores negativos que a OSCE deveria condenar, por ser potenciadora de tensões e quiçá promotora de terrorismo. Era uma proposta que, desde o início, um país como o Azerbaijão considerava indispensável que figurasse no texto. Estávamos no ano seguinte ao 11 de setembro e tudo quanto pudesse ser visto como potenciador de violência era diabolizado.

(Para um leigo nas coisas internacionais, pode parecer que este jogo com palavras é apenas um preciosismo formal, irrelevante e sem consequências. Não é assim: quando, num documento internacional, algo fica acordado por unanimidade, esse conceito e o seu enquadramento normativo convertem-se em doutrina obrigatória, sendo represtinado noutras decisões futuras, passando a referencial orientador da organização, a menos que um outro consenso alternativo, a obter também por unanimidade, o venha entretanto a substituir).

Sem surpresas, a delegação da Arménia opunha-se, desde o início, à inclusão da fórmula. Sendo a Arménia o grande defensor da secessão da região do Nagorno-Karabakh, temia que a condenação no texto do "separatismo violento", pudesse vir a ser utilizado para desequilibrar o futuro tratamento deste "frozen conflict" na ordem internacional.

Quer a Arménia quer o Azerbaijão tinham os seus apoiantes entre os restantes membros da OSCE, embora eles fossem já escassos, tanto mais que existe de há muito um cansaço na comunidade internacional sobre este assunto. Para a nossa presidência, o importante era conseguir "fechar" o documento, com ou sem a inclusão do tal conceito, que considerávamos pouco significativo. Mas a posição do Azerbaijão era vital, porque o país, taticamente, mantinha "refém" desta inclusão o seu acordo face a outros documentos, sem o que o compromisso final da nossa presidência ficava comprometido.

A estratégia por nós delineada foi começar por tentar identificar os interesses particulares, em matérias abordadas em outras áreas das conclusões da cimeira, que os Estados que apoiavam a Arménia ou o Azerbaijão tinham. Objetivados , procurámos tentar acomodá-los, obtendo em contrapartida, por um "gentlemen's agreement", a garantia de que deixariam de dar apoio, em intervenções públicas em sessão, às posições arménia e azeri. Tentar enfraquecer, por lêncio de apoios, as partes num conflito é um primeiro passo para conseguir atenuá-lo.

Conseguido assim o conveniente isolamento dos dois países, passou-se à segunda fase: convencer cada um deles individualmente. Como? Obrigando os arménios a aceitar a inclusão da tal expressão considerada essencial pelos azeris, mas dando-lhe, como um "doce", a inserção, noutra parte do texto, de uma outra formulação mais leve, ligeiramente "compensatória" e favorável aos seus interesses. Aos azeris foi dito que tentaríamos que pudessem obter, na declaração final, a inclusão da expressão, mas que, em contrapartida, teriam de concordar com outras fórmulas compensatórias. As versões que íamos testando com eles eram, aliás, bem mais radicais do que aquelas que a Arménia exigia...


O meu colega azeri, Vaqif Sadikhov, cometeu o erro de, desde o início, assumir que a Arménia nunca aceitaria que o tal conceito de "separatismo violento" integrasse o texto. Para essa convicção, diga-se, não fui de todo estranho, em várias conversas que com ele tive, em que lhe fui referindo a "imobilidade" arménia. Por isso, foi-se mostrando aberto a aceitar uma frase "compensatória" potencialmente agradável para a Arménia, porque estava manifestamente convicto de que o compromisso nunca nunca se faria nesse "trade-off", por total relutância do adversário.

Pela Arménia, Jivan Tabibian, o embaixador que era representante permanente do seu país junto da OSCE, dizia-me que tinha estritas ordens de Yerevan para recusar a inclusão da expressão, mas, nas últimas horas de negociação, notei que se sentia fragilizado pelo estranho afastamento público de um seu tradicional aliado, a Rússia, nos momentos em que o tema era discutido.

Mal ele sabia que havíamos "comprado" (caro, confesso) o silêncio russo num dossiê essencial para Moscovo e que a Arménia estava agora praticamente sozinha em jogo. Talvez por isso, fui-o vendo cada vez mais sensível à aceitação das diferentes formulações compensatórias que lhe fui apresentando. Mas foi só cerca da meia noite que, já com o respetivo ministro dos Negócios Estrangeiros ao nosso lado, acordámos numa fórmula final que iriam submeter à sua capital - com necessidade de ser validada pelo próprio presidente da República! E, às seis da manhã (a diferença horária ajudava), Tabibian ligou para o meu quarto, no hotel Pestana da ribeira portuense, a confirmar-me a aceitação do compromisso que eu lhe propusera.


Eu não tinha praticamente dormido durante a noite, mas o dia começava bem. Restava agora "fechar" com o Azerbaijão. O essencial do que pretendiam estava obtido, pelo que o importante era que não objetassem à tal fórmula "compensatória". Porque era decisivo garantir uma forte pressão sobre eles, pedi a Elisabeth Jones, "assistant secretary of State for European and Asian affairs", que chefiava a delegação dos Estados Unidos, para me acompanhar na "démarche" junto de Sadikhov. Os EUA queriam o acordo, tinham mesmo conseguido moderar o tradicional apoio da Turquia à posição azeri. Mas íamos ter uma surpresa.

Sentados em frente a Vaqif Sadikhov, numa sala da Alfândega do Porto, expliquei que tínhamos obtido da Arménia a concessão que queriam e que esperávamos - expliquei que falava também em nome da União Europeia, com os EUA, Canadá e Noruega também de acordo - que o Azerbaijão acedesse então a aceitar a fórmula "compensatória". Sadikhov olhou-me, perplexo: "Mas a Arménia aceita mesmo a inclusão da frase?" Confirmei que sim. A resposta dele desarmou-me: "Bom, então se eles aceitam, o compromisso não nos interessa. Fiquemos então com o texto original, sem nenhuma fórmula". Tínhamos andado mais de 48 horas a negociar para nada...

Quando fui ver o arménio Tabibian, para lhe anunciar que, afinal, voltávamos à "square one", pelo que a sua concessão já não seria necessária, ele olhou-me com um sorriso de quem, lá no fundo, talvez estivesse à espera dessa "novidade". O Cáucaso é um mundo estranho.

Há poucos anos, no hall de um hotel em Baku, no Azerbaijão, caí nos braços de Vaqif Sadikhov, à época embaixador do seu país em Roma. Apesar de, nesses dias do Porto (e antes em Viena), termos mantido grandes discussões, havíamos ficado amigos. E lembrámos o seu antagonista Jivan Tabibian, um homem encantador, infelizmente desaparecido. Na vida internacional, é importante, sempre que possível, garantir um espaço autónomo para as relações pessoais, ao lado das tarefas oficiais que nos incumbem, por mais desagradáveis e tensas que estas possam ser.

É (também) assim a diplomacia.

Vermelho


Li ontem no "Público" que, no Brasil dos dias de hoje, se torna arriscado sair à rua vestido com algo de cor vermelha. Quem assim procede é visto, seja ou não seja, como apoiante do PT, ficando, no mínimo, sob o imediato risco de ser insultado, quando não mesmo agredido. Que tristeza! Quando uma sociedade chega a este ponto de tensão, a democracia não pode estar de boa saúde.

Há muitos anos, quando fui trabalhar para a embaixada em Londres, ao final de alguns meses, veio ver-me, numa tarde, um recém-criado amigo inglês, homem bastante mais velho, infelizmente já desaparecido. Suspeitei que queria dizer-me alguma coisa de pessoal, pelo modo como conduziu a conversa. A certo passo, foi direto ao assunto que ali o trazia: "Meu caro, vou ser muito franco. Tenho vindo a reparar que, já por mais de uma vez, em jantares mais formais em que temos estado juntos, você tem por hábito utilizar gravatas vermelhas. Talvez não saiba, mas isso, aqui em Londres, identifica vulgarmente as pessoas com o partido trabalhista. Ora acho que você não quererá que isso aconteça, em especial nestes tempos da senhora Thatcher". Dei uma boa gargalhada! Não fazia a menor ideia dessa subliminar ligação cromática e confirmei que esse amigo me conhecia ainda muito mal...

domingo, abril 03, 2016

Ir para fora cá dentro


Há umas semanas, dei comigo a ter vontade de ir comer uma "bacalhauzada" a um popular restaurante da Baixa lisboeta, especializado em pratos desse produto. Tinham-me advertido para o facto do local se ter tornado demasiado turístico e quase incaraterístico, com a qualidade culinária a ressentir-se disso. Mas decidi arriscar.

Sou teimoso no meu tradicionalismo. Gosto de revisitar, de quando em vez, e um pouco por todo o país, alguns velhos restaurantes que hajam tido renome, mesmo que, à partida, a hipótese de lá ainda se comer bem seja já muito remota. Tenho este vício há muitos anos, com a minha mulher a alimentar a tese de que acabamos por só reincidir num desses locais quando já nos esquecemos de como comemos mal da última vez que por lá fomos.

Mas, enfim, lá nos deslocámos ao tal restaurante, numa noite de sábado. Comecei por não gostar de tentarem "caçar-me" no meio da rua pedonal, por um "recrutador" de clientes, mas isso era o menos. Disse-lhe: "Eu sei onde quero jantar!". Não estava muita gente, eram quase todos estrangeiros. Foi-nos colocada à frente uma lista longa, em português e inglês, com as inevitáveis fotografias dos pratos - a lembrarem os menus de gelados espanhóis, e imagino que utilíssimas para surdos-mudos... 

A minha mulher quis pedir um esclarecimento sobre se o modo como uma determinado prato de polvo era confecionado. O empregado hesitou um pouco ao tentar responder à pergunta. Foi saber. A explicação que trouxe era muito confusa e perguntei-lhe a nacionalidade. Era nepalês. Para além de um vocabulário de meia dúzia de palavras em português, falava um inglês macarrónico, pouco adequado a discutir pormenores sobre o tratamento culinário do bicho. Consciente dessa limitação, chamou então um colega. Este, em lugar da meia dúzia de palavras portuguesas, sabia uma dúzia. Era do Sri Lanka. 

Ambos eram simpáticos, queriam ajudar, mas os bizarros clientes que nós éramos, a quem apetecia falar português em Lisboa, não se limitavam a apontar para a fotografia ou a soletrar o "grilled octopus with boiled potatoes". Queríamos saber algo mais. E eles, coitados, sorriam, impotentes. Comecei a "passar-me" e, devo dizer, senti-me um pouco Marine le Pen quando disse que queria falar com um empregado português. Nunca me tinha acontecido ter uma reação destas, embora nada xenófoba, apenas prática. (Faço parte dos portugueses que gostam que o seu país seja porto de acolhimento de estrangeiros, sentindo-me muito orgulhoso pelo modo como, em geral, os acolhemos). A minha atitude era, no entanto, a única possível, sendo que a alternativa seria sair porta fora. 

E lá veio um empregado português, também simpático, que era a cara "chapada" do Ricardo Araújo Pereira ("dizem que o meu irmão é mais...", esclareceu). O resto do jantar não teve história. Estava tudo "assim-assim", mais para o mau do que para o bom. Não vou lá voltar. Até me esquecer, claro. Até o clássico grão que fez nome à casa já não é o que era...   

Epicur



Já anda pelas bancas a "Epicur" da Primavera, mais uma belíssima revista que se publica em Portugal. 

Pode descobrir, nas suas 120 páginas, saborosíssimas crónicas, de Pedro Marques Lopes a Mário Zambujal, uma conversa entre Clara Ferreira Alves e António Vitorino de Almeida, e textos sobre muitas coisas boas da vida, de lugares a prazeres e belos vícios. 

Modestamente, meto por ali a minha colherada com uma croniqueta sobre uma experiência restaurativa de se lhe tirar o chapéu. Depois digam que não avisei!

Egoísta


Aqui está a capa do nº 57 da fantástica revista "Egoísta", sob a mão de mestre da escritora Patrícia Reis e a direção gráfica do imbatível mestre do design gráfico Henrique Cayatte.

Este número apresenta um excecional conjunto de textos sob o tema da Traição, que vivamente recomendo.

Uma vez mais, tenho o gosto de publicar um texto numa edição da "Egoísta".

sábado, abril 02, 2016

A Constituição

Passaram 40 anos sobre a data de aprovação da Constituição da República. Não obstante a retórica declaratória que emana do seu preâmbulo e de algumas partes do articulado, a verdade é que o texto que hoje rege a vida do Estado português está já muito distante daquele que então mereceu amplo apoio, no termo da Assembleia Constituinte (só o CDS se lhe opôs, num gesto a que hoje não podemos deixar de reconhecer alguma coragem e coerência). 

Há também que convir que foi o PSD (com o CDS) o principal propulsor das mudanças que o texto constitucional sofreu, desde 1976. Ao PS, sem o qual nenhuma revisão constitucional se faria, coube o papel menos glorioso, mas pragmático, de ir cedendo em pontos importantes da matriz socializante do documento original. Os socialistas foram fazendo isso de uma forma que, ao mesmo tempo, acompanhou a sua própria "social-democratização" interna ou, para ser mais claro, à medida que o partido caminhou mais "para a direita". Com o passar dos tempos, ao PS deve ter parecido importante, como partido de governo, ser visto como "market-friendly" e em sintonia com alguns padrões europeus predominantes. A sua, às vezes algo "envergonhada", associação a algumas revisões constitucionais foi sintoma disso.

A formação política que sempre se revelou mais imobilista face à Constituição foi, sem surpresa, o PCP, que nunca se associou ao desmantelamento das "conquistas de abril" e à deriva, no sentido conservador, do texto constitucional. Embora a doutrina do Bloco de Esquerda sobre o tema me escape, estou certo de que não deverá ter uma atitude muito diversa.

A direita, em geral, continua a não gostar desta Constituição e, por sua vontade, "limpá-la-ia" fortemente do seu caráter programático e adoraria transformá-la num simples esqueleto regulador do funcionamento das instituições, neutralizando-a ideologicamente. Para mostrar as suas razões, tenta escandalizar com a revelação (porque ninguém lê a Constituição) da anódina linguagem socializante e quase revolucionária de algumas proclamações e disposições. Não é por acaso que o órgão mediático da direita radical, o "Observador", associado ao reduto do pensamento universitário mais conservador, a Universidade Católica, procurou lançar este ano uma reflexão "científica" sobre a Constituição, com vista a sublinhar os seus alegados anacronismos. 

Devo dizer que só não fico surpreendido com esta iniciativa porque conheço "de ginjeira" a nossa direita e a sua estrutural obstinação em entender que esta Constituição é o produto de uma época, de uma conjuntura histórica específica, pelo que nela sobreviverão sempre dimensões datadas, da mesma maneira que o "às armas!" do nosso hino não nos convoca necessariamente, nos dias de hoje,  para as trincheiras. O que a muita dessa gente irrita na Constituição é que ela continua a lembrar o 25 de abril, uma data com que alguns ainda convivem mal e procuram fazer apagar da memória afetiva do país. Esses setores não entendem, nem entenderão nunca, que o caráter radical do texto original de 1976 (e do que disso ainda resta) se deveu precisamente à necessidade de nele consagrar "o dia seguinte" à 1974, que derrubou um regime que muitos continuam a só criticar "com pinças". Se a ditadura do Estado Novo tivesse evoluído, como aconteceu com o fascismo espanhol, a Constituição que iria substituir a documento congénere de 1933 (aprovado num plebiscito em que as abstenções contaram como votos a favor!) seria, com toda a certeza, bem mais "serena" no seu léxico. 

Tal como hoje está, é para mim mais do que evidente que a Constituição não constitui, em si, um fator bloqueador da modernidade do país, não condicionando minimamente o investimento externo e a sintonia de Portugal com a economia de mercado europeia. E, como os últimos anos bem provaram, foi ela que serviu de escudo protetor a algumas malfeitorias que a direita no poder procurou levar a cabo face aos direitos dos cidadãos mais desfavorecidos, tendo como alibi oportunista a "ajuda externa". Ver o presidente Rebelo de Sousa afirmar-se garante desta Constituição é algo que me agradou e que só posso desejar que venha a ser confirmado ao longo de todo o seu mandato.

Se alguma ideia havia de que fosse possível, a breve trecho, proceder a uma nova revisão constitucional, um simples juízo lógico afastará logo essa possibilidade. Como é de regra, a "modernização" do texto far-se-ia sempre num sentido de um pendor mais conservador. Mesmo na improvável hipótese dos socialistas se mostrarem abertos a isso, em aliança com o PSD e o CDS, é mais do que evidente PCP e Bloco não deixariam de retirar imediatas consequências políticas em termos do apoio ao governo. Por isso, quem pensa que pode haver condições, nos tempos mais próximos, para alterar a Constituição da República, bem pode "tirar o cavalo da chuva".

sexta-feira, abril 01, 2016

Zaha Hadid


Há cerca de três anos, estive numa conferência em Baku, no Azerbaijão. O encontro teve lugar no esplendoroso edifício que se vê na fotografia.

Não fazia a mais leve ideia do nome do arquiteto responsável. Acabo de saber que era uma arquiteta anglo-iraquiana, Zaha Hadid, prémio Pritzker, um espécie de prémio Nobel da Arquitetura, que morreu ontem.

Já agora, convém registar que dois arquitetos portugueses, Siza Vieira e Souto Moura, foram já galardoados com esse prémio.

Ser estrangeiro



Há semanas, em Londres, no caminho para o aeroporto, num “mini-cab”, perguntei ao motorista o que é que ele pensava da possibilidade do Reino Unido vir a sair da União Europeia.

O homem, de tez escura e sotaque iniludível, tinha ideias firmes sobre o assunto: nas últimas eleições tinha votado pelo partido anti-europeu UKIP, por achar que havia toda a vantagem em que o país abandonasse “essa coisa de Bruxelas”. E logo acrescentou: “Não sei de que país o senhor é, mas nós já estamos cheios de estrangeiros, não queremos cá mais”.

“Onde é que nasceu?”, perguntei. O homem confirmou: “No Sri Lanka. Vim há 11 anos para cá. Tenho nacionalidade britânica”. Não me enganara e não resisti a comentar: “Você e a raínha...”

Um cidadão da Comunidade britânica, como era aquele motorista, entendia que, pelo facto de ter obtido a cidadania, se tornara “um deles”. Estrangeiro, para ele, era um português ou um grego que, graças a “essa coisa de Bruxelas”, andava a disputar-lhe os postos de trabalho.

Tenho-me lembrado bastante disto, depois dos atentados na Bélgica.

Desde há anos que, com amigos belgas, venho discutindo a questão do que é “ser belga”. Como é sabido, as tensões comunitárias são ali fortíssimas, entre valõese flamengos. Há mesmo quem diga que o conhecido empenhamento do país no projeto europeu reside na tentativa de, por essa via, tentar diluir as suas fortes clivagens internas.

Mas alguém já se interrogou sobre o que pensarão, sobre isto, os habitantes de Mollenbeek, as comunidades árabes que, desde há muito, povoam as ruas de Bruxelas e de outras cidades? O que se lhes oferecerá pensar sobre a clivagem valões-flamengos? O que será, para eles, ser belga? Dir-lhes-á alguma coisa ser súbditos do “rei dos belgas”, num país em que, por uma razão concreta, o soberano se não intitula “rei da Bélgica”? Provavelmente, a sua pertença à nação árabe, talvez mais do que à Argélia ou Marrocos de onde vieram os seus pais, releva sobre qualquer afetividade à terra que os viu nascer. Imagina-se, aliás, como essa juventude reagiria se, numa guerra, fossem chamados a defender as fronteiras do país de que são nacionais.

Olhando para a sociedade internacional, fácil é concluir que há poucas realidades tão complexas como as que derivam da nacionalidade e do sentimento comunitário de pertença, em especial quando eles se misturam com questões étnicas e religiosas, em caldos de cultura frequentemente explosivos.

Por estranha felicidade, deve haver poucos povos mais mal preparados do que nós para entender essas mesmas realidades: uma população com unidade étnica, sem conflitos de crenças, com fronteiras e nacionalidade fixadas há quase nove séculos.

(Artigo publicado no "Jornal de Notícias" de hoje)

quinta-feira, março 31, 2016

Nostalgias do ofício

Para os nostálgicos das funções oficiais perdidas, já existia a frase clássica, e magnífica, do antigo ministro francês da Cultura, Renaud Donnedieu de Varbes: ""Passer de ministre à promeneur de son chien suppose un énorme travail sur soi-même".

Hoje ouvi outra ótima: "Deixar de ser ministro é sentarmo-nos no banco de trás do carro e darmo-nos conta de que, por uma qualquer razão, ele não arranca..."

Talvez não seja tarde


A propósito de algumas previsões catastróficas sobre o futuro do mundo, sob pressão da desregulação geopolítica que por aí vai, alguém lembrava que é da lei da vida que a solução para os problemas, em regra,  só emerge quando estes se tornam prementes. É então que a “criatividade” surge, nem que para tal tenha de recorrer-se a um “novo normal”.

Recordo-me do tempo em que as “exceções” concedidas ao Reino Unido ou à Dinamarca eram vistas com um horror ortodoxo, por parte da burocracia bruxelense. A ideia de que todos tínhamos obrigatoriamente de caminhar ao mesmo passo era a regra do jogo, porque, de certo modo, subsistia a esperança de que, mais cedo ou mais tarde, esses países “tresmalhados” haviam de ser conduzidos ao “redil” da pureza dos tratados.

Um dia, porém, em especial na perspetiva dos alargamentos, alguém se deu conta de que, para o projeto coletivo poder avançar, talvez fosse sábio estudar mecanismos de integração diferenciada, as chamadas “cooperações reforçadas”, garantindo, numa União cada vez mais diversa, uma flexibilidade que permitisse acomodar vontades e capacidades diferentes. Os tratados europeus passaram a incorporar esses mecanismos e à Comissão, vestal sagrada do património comum, foi conferida a função de velar para que esses modelos heterodoxos fossem compatíveis com o padrão integrador regular.

Nos dias que correm, o  caso britânico parece poder vir a trazer para a União uma nova onda de potencial flexibilidade, introduzindo mesmo o conceito das exceções eternas, isto é, dando a alguns Estados a faculdade de se não obrigarem, para sempre, a compromissos que aos outros são exigidos.

Se hoje trago aqui a questão da  integração diferenciada é para chamar a atenção para uma contradição em que a Europa está a incorrer e que, em certa medida, pode vir a prejudicar fortemente a gestão do seu futuro.

Como atrás ficou expresso, cada vez mais a União Europeia constata que, em determinados casos, na ausência de vontade política ou de condições objetivas, tem sentido dar a oportunidade aos Estados de se colocarem fora da observância de certas políticas. A única limitação será a necessidade dessa sua auto-exclusão não afetar a funcionalidade global do sistema, razão pela qual, como disse, a Comissão europeia funciona como o “árbitro” comunitário na condução desses processos.

Mas, se assim é, se se aceita crescentemente uma adoção diferenciada às políticas, por que razão a União Europeia não procede, de forma idêntica, logo nos processos de adesão? Por que diabo, sempre que a negociação destes se inicia, se parte do princípio de que os novos Estados aderentes têm, obrigatoriamente, que aceitar todo o acervo comunitário? Porque não encarar modelos de integração diferenciada, desde o primriro momento e para sempre?

Alguns objetarão que os “períodos transitórios” são precisamente isso. Não é verdade! Esses modelos derrogatórios temporários continuam a basear-se na ideia de que, um dia, todos adotarão a totalidade das políticas. Ora não é necessário que assim seja, devendo poder formatar-se uma adesão à medida de cada país.

Uma perspetiva deste género poderia facilitar, por exemplo, um processo como o da Turquia. Alguém acredita que será viável algum dia aplicar àquele país, sem imediata rutura do sistema, a Política Agrícola Comum e outras políticas que o gigantismo relativo do país tornam de implausível adoção? Porque não assumir isto e evitar estar a negociar com Ancara uma adesão plena, na lógica tradicional da totalidade dos “capítulos”, que todos sabem impossível? Este “teatro” interessa a quem?

Talvez não seja tarde.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Negócios")

Comissões parlamentares

Há algo de estranho - entre o masoquista e o naïf - neste interesse público, que começa a tornar-se preocupantemente regular, de ouvir contar, por longas horas (para além do sereno "from nine to five", para dramatizar mais as coisas), as várias versões sobre quem foi, afinal, o principal responsável pelo dinheiro com que, como contribuintes, todos tivemos de "entrar" para compensar os desastres financeiros da nossa banca. A única certeza que podemos ter é que esse dinheiro já não se recupera.

Uns vão dizer que os maus da fita são os banqueiros, outros a supervisão, alguns os governos, outros ainda a Europa. 

Com alguns dos convocados, os deputados mostram-se "engraçadinhos", com outros ríspidos, com uns poucos menos respeitosos, embora com todos se revelem sempre muito "inteligentes". 

Tal como no caso BES, as televisões adubam a criação de vedetas parlamentares, que, pela coreografia usada, se exibem bastante para a "plateia". Os canais informativos "chamam um figo" a esses bate-bola, que para eles funcionam como uma produção gratuita, de audiência garantida. Os generalistas e a imprensa agarram os "sound bites" dos duelos retóricos, em busca do deslize ou do escândalo.

No final, os deputados editam um relatório, talvez apontem uns dedos acusadores (a menos que, para obterem um texto consensualizado, acabem por ser "redondos" nas conclusões) e vão para casa, felizes e contentes, com a sua missão "fiscalizadora" cumprida.

Até ao próximo banco falir e o programa voltar a repetir-se, claro.

Se é um facto que nenhuma consequência jurídica vai resultar deste exercício, alguém ainda me há-de conseguir explicar por que razão, no caso do Banif, todos os grupos parlamentares recusaram essa coisa tão simples que seria uma auditoria especializada internacional, levada a cabo por profissionais independentes qualificados e não por amadores políticos. 

Dava menos espetáculo, era isso?

Fora da História

Seria melhor um governo constituído por alguns nomes que foram aventados nos últimos dias mas que, afinal, acabaram por não integrar as esco...